Conferência1 que Isabel Casanova, linguista e professora associada com agregação da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, proferiu em 15 de outubro de 2014 em cerimónia realizada na Biblioteca Nacional de Portugal, para assinalar a passagem do 1.º centenário do nascimento do insigne filólogo e lexicógrafo português José Pedro Machado (1914-2005). Agradece-se à autora a amabilidade de ter acedido em disponibilizar este texto e a Paulo J. S. Barata o apoio que tornou possível tal divulgação.
É com todo o prazer e honra que me associo à homenagem que hoje aqui é prestada ao Dr. José Pedro Machado.
O Dr. José Pedro Machado foi um incansável estudioso da língua, foi um perfecionista que não perdeu, no entanto, o sentido das amplas correntes do pensamento linguístico, dedicando-se ainda, como poucos, à constante divulgação das letras.
Ele foi tudo isso porque certamente guardou sempre consigo o espírito próprio da juventude que nunca lhe fez perder a insaciável curiosidade, o prazer da interrogação e a capacidade de aproveitar o que de bom há naquilo que é efetivamente novo, mas sempre sem peias quando se trata de rejeitar a inútil velharia de novidade disfarçada.
O Dr. José Pedro Machado foi um homem de eleição, por isso sempre presente no nosso panorama cultural, indissociável das atuais tendências linguísticas de que foi muitas vezes um precursor.
Este espírito aberto cedo se revelou na defesa do que é essencial e na flexibilidade face ao acessório, na defesa do que é estável e fechado, na flexibilidade face à moda. Assim, mostrou-se sempre preocupado com a defesa da estrutura gramatical, esse grande edifício que alberga e protege a língua. Como sabemos, a estrutura linguística constitui um mecanismo instrumental de natureza fechada – as classes gramaticais são de facto classes fechadas – mecanismo esse que evolui lentamente. José Pedro Machado fala-nos dos «polidores da prosa» e dos «cirurgiões da sintaxe» que deveriam tomar «sobre si as obrigações de apanhar solecistas com a boca na botija e de esmagar alguns dos vícios que avassalam a linguagem corrente»2.
Esta atitude prudente – talvez mesmo de certa forma rígida – visando defender e preservar a estrutura da língua portuguesa, transforma-se, porém, no que diz respeito à lexicografia, aos elementos que nesse edifício coabitam, pois, como diz José Pedro Machado, «os gramáticos evitam abonar as doutrinas expostas, sobretudo os erros de linguagem, com textos da autoria declarada de chefes de estado ou de políticos seus contemporâneos»3. É conhecida a frase latina «Caesar non supra grammaticos»4 (César não está acima dos gramáticos), proferida segundo se crê quando alguém terá defendido um erro linguístico, argumentando que, tendo sido ouvido ao imperador romano Tibério, não poderia ser um erro. Mas erro era certamente, pois César governa sobre o povo, mas não sobre as palavras. César não está acima das palavras.
O facto de os nossos políticos, do Presidente da República aos Secretários de Estado, da esquerda à direita, dizerem que tal acontecimento se deu «*há cinco anos atrás», que «*se reterem os impostos na fonte tudo se torna mais fácil», ou o facto de a comunicação social dizer «*muito obrigado por ter aceite o nosso convite» ou «*o senhor perdoou-a» não torna estas frases aceitáveis. «Caesar non supra grammaticos». Mas tanto se ouve!… Agora que o verbo pôr parece estar moribundo – «?o Sol coloca-se a Ocidente», «?colocamos a mesa para o jantar» – apetece perguntar: ?E qual é a terra que fica para além do sol colocado? Já não se fazem perguntas, colocam-se questões. Também já não se lembra nada; agora relembra-se logo. Algumas observações José Pedro Machado não conseguiu que vingassem e uma é sem dúvida o Alcorão e não o Corão; Alcorão é a forma correta em português5; outras vingaram: quando, no final do jogo de futebol, os jornalistas diziam, a propósito daqueles minutos extra, que o árbitro estava a proceder a descontos. Na realidade, se o árbitro procedesse a descontos, o jogo teria menos de 90 minutos. Não! – diz o Dr. José Pedro Machado, o árbitro procede a compensações (subentendidos os minutos em que o jogo esteve parado).
Já os dicionaristas não deveriam evitar o registo e o estudo, por exemplo, de certas palavras que a sociedade e a moda conotaram de «indesejáveis» por obscenas ou estrangeiras. Mostra-se aqui o Dr. José Pedro Machado totalmente aberto e tolerante: «Pertenço ao número acanhado daqueles para quem um dicionário deve ser um dicionário e, como tal, não pode estar sujeito a qualquer censura lexical, à não aceitação deste ou daquele vocábulo»6. Esta perspetiva é hoje pacificamente aceite pelos lexicógrafos: não compete aos dicionaristas travar – ou tentar travar – a normal evolução da língua, não compete aos linguistas arvorarem-se em defensores de uma ética social apregoando a falsa defesa do património linguístico.
Importa defender a estrutura da língua, deixando, porém, abertas as portas às necessidades sociais, à inovação e ao contacto linguístico. José Pedro Machado mostra-se, pois, atento aos estrangeirismos, consciente de que a língua é um ser vivo em contacto com outros seres vivos. Já no século XVI dizia o grande – e primeiro – gramático português, Fernão de Oliveira:
Fingir ou achar vocábulos novos é perigo, diz Quintiliano, em tanto que, se são bons, não vos louvam por isso, e se não prestam, zombam de vós. Verdade é que não é coisa tão áspera que o uso não abrande7.
José Pedro Machado mostra-se consciente de que o verdadeiro nacionalismo se revela na defesa do que é estrutural. Mas não se mostra interessado no falso nacionalismo ou nacionalismo retrógrado que toma uma atitude inflexível perante as mutações vocabulares da língua vivida.
Conscientes de que a criação absoluta, total, é raríssima, sabemos que a língua necessita constantemente da criação de novas formas expressivas nascidas das novas experiências da vida, movida, como diz Rodrigues Lapa, «por sentimentos de necessidade, preguiça, comodidade ou gosto artístico».
Assim, tentar negar ou inverter a tendência de o português se encher de palavras «estranhas», como snack-bar, poster, email, filme, bibe ou puzzle, por exemplo, é esquecer a realidade que nos rodeia. Línguas há, como o albanês, por exemplo, que tomaram de empréstimo tantas palavras que poucas são as de origem. Mas contrariamente ao albanês, muitas línguas índias americanas apresentam pouquíssimos casos de importação das línguas vizinhas. O inglês, considerado hoje um grande exportador linguístico, tomou de empréstimo cerca de 3/5 das suas palavras de utilização mais corrente.
O fenómeno da evolução linguística é inevitável. A língua muda porque a sociedade muda. Tentar travar ou controlar a língua significa tentar travar ou controlar a sociedade – tentativa cujo insucesso sabemos ser garantido. Em 1977 o governo francês aprovou uma lei proibindo a utilização de palavras estrangeiras em textos oficiais sempre que o francês dispusesse de palavra equivalente. Ora esta lei é hoje famosa pela desobediência a que deu origem. E o francês, que conseguiu ganhar uma fama de grande purismo, é conhecido hoje como uma língua também denominada de franglais. O escritor americano Mark Twain diz com graça que temia ir a França por não ter aprendido a língua. Afinal, diz ele, há muito falava francês sem nunca ter aprendido.
Pela minha parte, confesso já que a minha casa tem alcatifa e os meus candeeiros abajur. Eu uso gabardina, e quando é preciso faço tratamentos laser e desinfeto feridas com álcool. Gosto de champanhe, não sou grande especialista em aritmética ou álgebra, condeno o boicote político e sou fã do Dr. José Pedro Machado. Confesso já também não usar pau de carmim, mas batom.
Negar que os estrangeirismos são uma fonte de evolução linguística seria negar a evidência, assim como tentar impedir os estrangeirismos seria tentar reter a evolução linguística. Em 1712, por exemplo, Jonathan Swift, escritor inglês que todos nós conhecemos pelo menos das Viagens de Gulliver, propunha a criação de uma Academia cujo objectivo era «fixar a nossa língua para sempre»8.
Em Portugal sentiu-se o mesmo. Data de 1750 uma gramática intitulada Antídoto grammatical, balsamo preservativo da corrupção da língua latina, ou curioso descobrimento dos principaes erros, barbaridades, e incoherencias do novo methodo para aprender a dita lingua, etc. Talvez se a dita língua se não tivesse corrompido estivéssemos hoje aqui ainda a falar latim... e bárbaro!
É precisamente a evolução linguística que mais atenção e crítica desperta na comunidade. A língua é pertença de todos e qualquer desvio das normas tradicionais a tornam imediatamente foco de censura. A noção de que os «melhoramentos» linguísticos não conseguem de forma alguma acompanhar ou compensar o ritmo da «corrupção» linguística veio criar em nós um infundado pessimismo e tem sido fácil confundir um fechar de portas à evolução linguística com falsos sentimentos nacionalistas. A crítica fácil aos estrangeirismos, por exemplo, leva-nos por vezes a esquecer os aspetos realmente importantes: o nacionalismo deverá atender à defesa da gramática e da sua estrutura, deixando espaço para a língua evoluir livremente.
Esquecemo-nos por vezes de que a evolução linguística é normal e saudável. As linguagens emigradas sempre foram, mercê das novas condições de vivência, do corte com a terra de origem, etc., linguagens mais conservadoras. O inglês americano está hoje mais próximo do inglês do século XVII do que o inglês falado nas Ilhas Britânicas, o português falado no Brasil é bastante mais conservador do que o português europeu. Cito apenas, a título de exemplo, a articulação das vogais átonas pretónicas brasileiras (como em coração) e vocábulos hoje entre nós caídos em desuso. Fernão Lopes, por exemplo, fala-nos do desquite de D. Leonor, palavra hoje viva no Brasil e praticamente morta em Portugal.
Assim se compreende como é fácil o lexicógrafo cair no conservadorismo camuflado por um protecionismo bem-intencionado. Não foi esse o caso do Dr. José Pedro Machado.
O grande dicionarista do século XVIII, Samuel Johnson, diz-nos no seu prefácio (1755):
Quando vemos os homens envelhecerem e morrerem, uns atrás dos outros, século após século, rimo-nos do elixir que promete prolongar a vida por milhares de anos; o mesmo se poderia dizer do lexicógrafo que, não tendo sido capaz de encontrar uma nação que tenha preservado a sua língua da mutabilidade, acredita que o seu dicionário será capaz de embalsamar a língua e protegê-la da corrupção, e ruína, que tem poderes para alterar a natureza sublunar ou libertar o mundo de uma só vez da loucura, vaidade e afectação.
Nada disto pretendeu o Dr. José Pedro Machado. No entanto, apesar de uma visão aberta e lúcida sobre a língua, a sociedade académica não o tratou bem. Como aliás não costuma tratar bem nenhum lexicógrafo. Obra de um homem, que deveria ter sido obra de uma larga equipa, o trabalho do dicionarista tem sido sempre subestimado. Também poucos conhecem os seus escritos sobre ortografia, o impressionante e árduo trabalho de investigação que levou à biografia de António Morais Silva, as sucessivas reedições do Dicionário dito de Morais, o Dicionário etimológico, os vários livros de etimologias e o Grande livro de provérbios, que só lamento não ter um índice que facilite as buscas.
Mas o trabalho do dicionarista é sempre ingrato. Queixa-se o primeiro dicionarista (monolingue) português: Bernardo Lima e Melo Bacellar:
A iluminada França, querendo fazer uma [obra] semelhante, instituiu uma Academia de 40 sábios; sábios bem escolhidos, bem auxiliados; trabalhadores incessantes por 148 anos; e colatores de dúvidas três vezes na semana; que o seu fruto tem sido um dicionário da língua francesa, que já imprimiram quatro vezes, depois que tantas o emendaram; e que continuam sempre a corrigir. E que sou único, sem tantos princípios como eles têm; sem ser escolhido, sem ser auxiliado; sem ter com quem confira, sem ter ainda 48 anos de idade; e que o meu fruto é um Dicionário da Língua Portuguesa9.
Tal queixa vem já registada em Samuel Johnson (1755), dizendo que a sociedade encara o dicionarista, não como um estudioso, mas como um escravo da ciência cujo papel a desempenhar é apenas o de afastar o lixo e tudo o que obstrui o caminho do verdadeiro Estudioso e do verdadeiro Génio. Um papel absolutamente secundário, portanto. Dizia também Samuel Johnson que os dicionários são como os relógios: o pior é melhor do que nenhum e do melhor não se pode esperar que seja mesmo exato.
Um dicionarista de exceção será aquele que, pelo profundo conhecimento da estrutura da língua, não teme a evolução, a satisfação de novas necessidades criadas pelo contacto entre os povos. Foi sempre este espírito aberto e não timorato que encontrámos na obra do Dr. José Pedro Machado.
Mas, claro que no melhor pano cai a nódoa. E defeitos teria ele certamente, mas só lhe conheci um: ser um convicto adepto do Benfica.
Bem-haja!
1 Conferência proferida a 15 de outubro de 2014 no Auditório da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), por ocasião do centenário do nascimento de José Pedro Machado e da inauguração da Mostra José Pedro Machado (1914-2005): uma vida de estudo, patente na Sala de Referência da BNP entre 15 de outubro e 31 de dezembro de 2014.
2 José Pedro Machado – «Polidores e cirurgiões da língua portuguesa». In Palavras a propósito de palavras. Notas lexicais. Lisboa: Editorial Notícias, 1992, p. 13.
3 José Pedro Machado – «Pudor e política em dicionários e gramáticas». In Palavras a propósito de palavras. Notas lexicais. Lisboa: Editorial Notícias, 1992, p. 17.
4 Ouvir-se-ia mais tarde argumento semelhante no Concílio de Constança em 1414.
5 Ver, por exemplo, Isabel Casanova – Português revisitado. Dúvidas e erros frequentes. Lisboa: Plátano Editora, 2013.
6 Ibidem.
7 Fernão Oliveira – A gramática da linguagem portuguesa. Introdução, leitura actualizada e notas de Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: INCM,1975, p. 96.
8 Jonathan Swift – «The Continual Corruption of our English Tongue». The Tatler. Londres, 1712.
9 Bernardo Lima e Melo Bacellar – Diccionario da lingua portugueza em que se acharão dobradas palavras das que traz Bluteau... Lisboa: Offi. de Jozé de Aquino Bulhons, 1783, p. IX-X.