«(...) Talvez, algures na origem, existisse diferença entre Mioceno (nome) e miocénico (adjectivo), mas actualmente, em Portugal, apenas se usa Miocénico (e, por conseguinte, Antropocénico). E, de facto, o nome é Miocénico e o adjectivo, miocénico. (...)»
De um ponto de vista linguístico, puro e simples, ambas as formas, Antropocénico e Antropoceno, estão correctas e são equivalentes em português. Contudo, há nuances que, em Portugal, determinam o uso de uma forma em detrimento da outra. Umas mais relevantes que outras.
Começando pelas menos relevantes para a questão linguística em causa, mas nem por isso menos interessantes, pois têm a ver com a pergunta a que se deu resposta no Ciberdúvidas em 02/03/2021.
A primeira é que o termo é um neologismo engendrado por volta do ano 2000 por alguns colegas geólogos, químicos e climatologistas britânicos, por analogia, por exemplo, com Miocénico (ou Miocene, em inglês), mas tendo por base o étimo grego ánthropos, «homem, ser humano».
A segunda é que se trata de um termo informal, ou seja, não está (pelo menos, ainda) formalizado como unidade da Tabela Geocronológica (ou Cronostratigráfica, consoante as circunstâncias geológicas), i.e., da tabela de tempo geológico, internacionalmente aceite. E como geólogo com “voto” na matéria, espero que nunca esteja pois – na minha opinião – não faz sentido “geológico”. Mas essa é outra questão. Sobre esse tema, o do sentido geológico do Antropocénico, remeto para um texto meu publicado há uns tempos na revista Al-Madan (Centro de Arqueologia de Almada).
Dito isto, segundo a prática geológica e estratigráfica do português europeu, os nomes dos períodos e das épocas do tempo geológico no Cenozóico terminam em -énico e não em -eno. Miocénico, por exemplo, em vez de Mioceno. Assim, segundo essa prática, seria Antropocénico e nunca, com ênfase no nunca, Antropoceno. Ou seja, pode existir controvérsia sobre a adopção do conceito e a formalização dessa fatia da história da Terra (e essa controvérsia é lícita e saudável); não há (ou não deveria haver) controvérsia quanto à grafia do termo a usar em Portugal. A expressão Antropoceno soa mal ao ouvido do especialista, do profissional (em Geologia) em Portugal.
O que não significa que Antropoceno (e Mioceno) esteja errado. As formas em -eno são usadas no português do Brasil (e também em espanhol). Curiosamente, no Brasil também é usada a forma Miocênico. A própria International Commission on Stratigraphy (ICS), a entidade internacional que gere as unidades da Tabela Geocronológica (ou Cronostratigráfica), reconhece essas duas práticas nomenclaturais, conforme se pode confirmar pela consulta da tabela da ICS em português europeu e em português do Brasil, tabelas essas produzidas por geólogos nacionais e brasileiros, respectivamente.
Há mais diferenças entre o português europeu e o português do Brasil em aspectos da terminologia geológica. Por exemplo, os nomes dos minerais em Portugal terminam normalmente em -ite, que é uma terminação típica de objecto geológico (como nos fósseis, Amonite, Trilobite, nomes femininos), por exemplo, malaquite, calcite, pirite. Já no Brasil, esses minerais são apelidados de malaquita, calcita e pirita. No Brasil também se fala, frequentemente, em Amonitas e Trilobitas, e no masculino.
Qual a razão para tal diferenciação? De onde vem a (predilecção pela) terminação -énico do português europeu? As razões não parecem claras, e duvido que se chegue a uma conclusão.
Constato que em 1872, Carlos Ribeiro (1813-1882), distinto geólogo dos Serviços Geológicos de Portugal, empregava o termo Miocene [sic], como nome e adjectivo. Alguns anos depois, por volta de 1880, a propósito do famoso “Congresso Anthropologico de Lisboa”, escrevia Mioceno. Já em 1888-92, o seu colega Jorge Cândido Berkeley Cotter (1845-1919), usava Miocenico [sic]. Verifico com alguma surpresa que em 1932, no seu Compêndio de Geologia, o Prof. Carrington da Costa (1891-1982), da Universidade do Porto, usava ambas as terminações, Mioceno e Plistocénico, por exemplo (como substantivos e adjectivos, indistintamente). Contudo, em 1906, no seu Curso de Mineralogia e Geologia, o Prof. Gonçalves Guimarães (1850-1919), da Universidade de Coimbra, usava apenas a terminação -énico.
Não querendo tornar esta pesquisa exaustiva, mas referindo apenas alguns autores como pontos de referência, em 1951, Veiga Ferreira (1917-1997), dos Serviços Geológicos de Portugal, usava o termo Miocénico. Igualmente, em 1956, Henriques da Silva, da Universidade de Coimbra, referia-se a Miocénico. Já nos anos de 1970, o Prof. Carlos Teixeira (1910-1982), da Universidade de Lisboa, usava apenas a terminação -énico.
Nas escolas de Lisboa, seja na Universidade de Lisboa ou na Universidade Nova de Lisboa, apesar de existirem algumas pequenas diferenças na terminologia adoptada, usa-se a terminação -énico. Do mesmo modo, no Laboratório Nacional de Energia e Geologia (sucessor dos Serviços Geológicos), nomeadamente nos mapas geológicos, documentos de base da profissão/actividade de geólogo, usa-se Miocénico. Não tenho conhecimento que -eno seja usado por colegas da academia ou da Geologia aplicada noutras partes do país. Há, de facto, variantes terminológicas em diversas universidades nacionais, variantes que acho saudáveis e interessantes, pois gosto de diversidade, mas não em relação a este tema1.
Talvez, algures na origem, existisse diferença entre Mioceno (nome) e miocénico (adjectivo), mas actualmente, em Portugal, apenas se usa Miocénico (e, por conseguinte, Antropocénico). E, de facto, o nome é Miocénico e o adjectivo, miocénico.
1 Cf. Carlos Marques da Silva, "Então, já chegámos ao Antropocénico?", Al-Madan, Centro de Arqueologia Almada, II sér., 21, 2017, pp. 14-19.
N. A. – O autor agradece à colega paleontóloga Sofia Pereira, do Centro de Geociências da Universidade de Coimbra, a aturada pesquisa bibliográfica e a profícua troca de impressões sobre o tema.
Comentário inédito, escrito propositadamente para o Ciberdúvidas. Mantém-se a ortografia usada pelo autor, anterior à norma em vigor.