«Em Portugal, na primeira declaração do estado de emergência, em 18 de Março de 2020, a palavra “guerra” é a mais citada no discurso do Presidente, entre frases como “combate duro e longo”, “inimigo invisível”, “combate diário” [...].»
As metáforas militaristas são comummente usadas por políticos e jornalistas na abordagem de crises pandémicas. Nos primeiros meses da pandemia de covid-19, palavras como batalha, luta, guerra, inimigo, heróis, vitória surgiram frequentemente nos discursos oficiais em Portugal e no mundo. O presidente francês Emmanuel Macron anunciou o confinamento do seu país em Março de 2020 com a frase: Estamos em guerra». No Reino Unido, num discurso “raro” a rainha Isabel II comparou as medidas para vencer o coronavírus com a evacuação durante os bombardeamentos nazis na Segunda Guerra Mundial. Em Portugal, na primeira declaração do estado de emergência, em 18 de Março de 2020, a palavra “guerra” é a mais citada no discurso do Presidente, entre frases como «combate duro e longo», «inimigo invisível», «combate diário» e em Abril seguinte, no prolongamento do estado de emergência, o Presidente referia-se à pandemia como «adversário insidioso e imprevisível», «combate da vida e da saúde». Em Maio passado, na abertura da Assembleia Mundial da Saúde, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, exortou o mundo a entrar numa «economia de guerra» contra o coronavírus.
A cobertura mediática da pandemia seguiu e reforçou quer o enquadramento de crise quer a linguagem militar. Em 15 de Novembro de 2020, o editorial do PÚBLICO tinha como título “Covid-10: a guerra é a guerra”.
Tal como na guerra, a batalha contra o coronavírus teve os seus heróis. A enorme popularidade do vice-almirante Gouveia e Melo é um exemplo de heroicização de uma personalidade à qual o sucesso da vacinação deu visibilidade e a quem os portugueses associam as características que a literatura concede aos heróis: abnegação, espírito de sacrifício, modéstia, coragem. Assim como na guerra o militar pode tornar-se um herói através de acções que visam salvar os seus companheiros de uma situação perigosa e destruir o adversário ou reduzir a sua capacidade de ataque, na pandemia o vice-almirante usou a vacinação como arma de combate ao inimigo-vírus para proteger e salvar os portugueses. O camuflado que usou permanentemente perante as televisões e no terreno, a sobriedade, simplicidade e rigor no cumprimento dos calendários da vacinação remetem inapelavelmente para as obrigações da caserna.
Embora o vice-almirante constitua o exemplo individual de um herói, existem exemplos notáveis de grupos sociais e profissionais, como médicos especialistas nas áreas ligadas à pandemia – infecciologistas, virologistas, pneumologistas, internistas – e também enfermeiros, técnicos, auxiliares. Estes heróis colectivos, ouvidos em ambiente hospitalar encheram ecrãs e páginas de notícias e reportagens sobre experiências de vida, de salvação e de morte nos primeiros meses da pandemia. Outros heróis menos visíveis participaram também na retaguarda da batalha contra o coronavírus garantindo os bens essenciais à sobrevivência de todos.
Nos primeiros meses da pandemia a subida dos índices de popularidade dos governos em funções foi um fenómeno global que só teve excepções no Brasil e nos EUA. Em Portugal, o Governo, em particular o primeiro-ministro, foi o protagonista e o actor principal na definição da agenda política e a fonte privilegiada de notícias, moldando as percepções do público e promovendo a necessidade e a aceitação de medidas extraordinárias de controle e limitação das liberdades, decorrentes dos estados de emergência. Esse foi um tempo comprimido pelo sentido de urgência em que as rotinas foram suspensas e em que as medidas tomadas num momento podiam ficar desactualizadas no momento seguinte.
Se é certo que nos primeiros meses da pandemia a heroicização e a ritualização não geraram polémica nem oposição, na fase seguinte o confinamento deu lugar à saturação e não tardaram os questionamentos sobre quase tudo: uso de máscaras, medicamentos anticovid, confinamento, enquanto o Governo era acusado de medidas contraditórias que confundiam os portugueses. Surgiram os grupos negacionistas que encontraram também o seu herói na figura de um juiz. As metáforas de guerra foram cedendo e o discurso político e jornalístico retomou as regras do jogo democrático.
Não há no uso de metáforas de guerra nada de particularmente novo e isso deve-se não só ao facto de serem facilmente compreensíveis mas sobretudo à sua capacidade de desencadearem emoções e imporem limites entre “nós” e o “inimigo” (o vírus). Habituámo-nos a ouvir essas metáforas também no discurso de especialistas em doenças infecciosas quando dizem que patogenos “invadem” as células, “colonizam” o hospedeiro ou que as “defesas” naturais são “comprometidas”, “conquistadas” ou “oprimidas”. Porém, embora retoricamente eficaz, a metáfora pode ao mesmo tempo limitar e distorcer a compreensão. As guerras obedecem a planos e estratégias secretas estabelecidas ao mais alto nível político e militar, mas as pandemias não. Conter e eliminar surtos virais requer cooperação, transparência e partilha de informação. Metaforizar simbolicamente pandemias como se fossem guerras prejudica a transparência e conduz à aceitação acrítica da suspensão de regras democráticas.
No entanto, apesar de todas essas limitações - e talvez por causa delas - a metáfora continua a ser um poderoso recurso simbólico.
Artigo publicado no jornal do Público no dia 11 de outubro de 2021. A autora segue a norma ortográfica de 45.