O português e as línguas da Ucrânia - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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O português e as línguas da Ucrânia
O português e as línguas da Ucrânia
Também a propósito de bilinguismo na história de Portugal

« (...) Em geral, as nossas línguas soam de forma muito semelhante, tal como muitas vezes afirmam as pessoas que não sabem nem russo nem português. (...)»

 

Introdução (por Marco Neves)

[O blogue Certas Palavras]  já me trouxe algumas surpresas muito agradáveis. Uma delas foi esta: descobri Serge Lunin, tradutor e historiador ucraniano que se interessa muito pela língua portuguesa — e, no seu país, tem de viver algumas das questões que abordo por aqui de forma muito próxima e intensa. Desafiei-o a escrever um texto sobre o seu interesse pelo português e sobre como é viver num país com duas línguas. Aqui está o resultado, traduzido, a pedido de Serge Lunin, por Ivan Mestre. É um texto que fala dos sons do português aos ouvidos dum falante de russo, do bilinguismo por que Portugal já passou, da forma como as línguas podem estar ligadas a profundos conflitos nacionais… [...]

A língua portuguesa e eu (por Serge Lunin)

1574680500239_lingua_portuguesa_2_c.jpgO português entrou na minha vida por um mero acaso, após comprar um manual de português de 1963 para autodidatas a um alfarrabista. Na altura, o português europeu não era ensinado na União Soviética, e ainda faltava um ano para o golpe de Estado no Brasil. Por isso, ao referir a palavra escada, o autor ensinava a pronúncia “izcada”, e só numa nota mencionava que em Portugal se pronunciava como “escada”.

Após a Revolução dos Cravos a situação passou a ser a oposta. Obtive outro manual com a versão europeia, mas comprei ambos os livros já na Ucrânia independente, quando estudava na universidade e recebia uma bolsa de 5 dólares por mês. Na altura não podia permitir-me o luxo de ter Internet ou de viajar para a Europa. Na televisão passavam telenovelas brasileiras traduzidas, já sobre Portugal não sabia quase nada.

Sabia que precisava de fazer alguns esforços. Em Kharkov há uma grande biblioteca científica, e lá encontrei um curso audiovisual de português de Antonio Fornazaro, composto por quatro cassetes e um manual. Pela primeira vez ouvi como falavam os portugueses: a sua forma de falar era surpreendentemente agradável. O português do Brasil agrada-me menos.

Em geral, as nossas línguas soam de forma muito semelhante, tal como muitas vezes afirmam as pessoas que não sabem nem russo nem português.

Desde então passaram muitos anos. Há muito que vejo as notícias da RTP ou da TVI pela Internet. No ano passado ganhei o concurso de tradução amador “Por Outras Palavras” da Universidade de Lisboa, e finalmente falei com portugueses pessoalmente. Visitei Portugal, aluguei um apartamento em Lisboa e passeei nos seus arredores. Em Portugal está-se muito bem, e se pudesse, ficava muito mais que nove dias.

O português também me foi útil quando decidi aprender francês, visto que ambas as línguas têm muito em comum. Agora estou a pensar no espanhol, [mas] já há muito tempo que consigo entender frases simples sem as traduzir (obviamente que nem todas).

Há um ano e meio chegou-me informação sobre uma página da história portuguesa, que por aqui ninguém conhece. Acontece que, em tempos, Portugal foi governado por reis espanhóis e nessa altura as pessoas instruídas falavam nas duas línguas (para além do latim). Comecei a pesquisar a questão ao ler a história da língua portuguesa em russo e ao consultar materiais na Internet em inglês. Mas só em português, espanhol e francês é que existem trabalhos detalhados sobre este tópico. Ainda bem que não me limitei ao inglês!

Na Internet encontrei artigos de Ana Isabel Buescu e outros especialistas (tive a sorte de poder falar com ela e com mais outros dois pessoalmente em Lisboa). De seguida li a tradução portuguesa do trabalho [A Língua e Cultura Portuguesas no Tempo dos Filipes] de Pilar Vázquez Cuesta, que é o único que explora esse tema. O livro foi-me enviado de Portugal por um amigo meu.

Eis o que descobri:  o rei João IV publicou um livro em espanhol depois de ter subido ao trono e quando liderava a guerra de restauração da independência. O poeta Jerónimo Baía elogiava o seu filho, Afonso VI, pelas vitórias sobre os espanhóis… em espanhol. Nas peças de Gil Vicente e Pedro Salgado, uma das personagens falava em português, enquanto a outra respondia em espanhol…

Ucrania.jpgPorque me interessei tanto por isto? Estas situações de bilinguismo são normais na Ucrânia. Falo em russo, mas posso mudar para o ucraniano quando é mais apropriado, visto que as duas línguas são tão semelhantes entre si como o português e o espanhol. Frequentemente na televisão ou em apresentações de livros as pessoas conversam nas duas línguas simultaneamente. Alguns dos escritores de expressão ucraniana mostram as personagens que falam russo de forma negativa, tal como o dramaturgo Simão Machado fazia.

Não duvido que alguns portugueses se possam rir de mim, dizendo que só noto tal semelhança porque vivo na Ucrânia. Para Portugal tudo isto são águas passadas, mas aqui está em jogo o bem-estar de muitos milhões. A guerra no Leste da Ucrânia já se prolonga há três anos. A minha cidade não foi muito afectada. Apenas uma vez ouvi disparos, e de outra vez houve a explosão de uma granada, mas as cidades mais a sul não têm tido tal sorte.

Em ambos os exércitos se fala o russo frequentemente. A diferença reside no facto de que, no exército ucraniano, todos entendem ucraniano e muitos falam nesta língua. Entre os que vieram da Rússia para combater na nossa terra ninguém entende o ucraniano e alguns odeiam-no.

O conflito entre as duas línguas dura há 25 anos, desde a independência da Ucrânia. Agora tornou-se mais exacerbado, porque os que justificam a invasão por parte da Rússia com a defesa das pessoas de expressão russa (eu, por exemplo, sou uma delas) dão uma boa desculpa para os que odeiam a língua russa proporem leis que tornam a minha vida ainda mais difícil.

Todos os dias no Facebook e noutros sítios centenas de pessoas discutem acesamente o conflito linguístico. Infelizmente, na Ucrânia desconhecem a experiência dos outros países, em que existem problemas semelhantes. As emoções acabam por afastar qualquer desejo de estudar a história de outros países e procurar analogias.

É daí que surge a minha vontade de fazer alguma coisa para abrir os olhos das pessoas. Decidi fazer uma coletânea de autores da Península Ibérica sobre a situação linguística em Portugal nos séculos XV-XVIII, e já escrevi um artigo sobre o tema para o site Historians, onde publico artigos sobre a história da Ucrânia.

Eu próprio consigo traduzir do português para o russo e para o ucraniano. Do espanhol e do francês terei que procurar tradutores. As editoras ucranianas já demonstraram interesse no tema, mas se ninguém lhes der um subsídio, infelizmente, nada feito. Publicar livros não é nada fácil na Ucrânia.

 

Cf. Hegemonia cultural na Ucrânia + A história da Ucrânia em sete mapas: o caminho até à soberania  +. A situação linguística na Ucrânia: apontamentos históricos

Fonte

Texto  da autoria do professor universitário Marco Neves,publicado no seu blogue Certas Palavras em 6 de fevereiro de 2017. Tradução de Ivan Mestre.

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