« (...) A questão da linguagem está pura e simplesmente em saber quem manda. (...)»
Um dicionário das palavras que caíram nas boas graças do nosso tempo, aproveitando o impulso de Flaubert e, depois, de Karl Kraus para pensar uma ética da linguagem (o primeiro, no seu Dictionnaire des idées reçues, das ideias feitas, enquanto formas eloquentes da “estupidez”, da bêtise, da sua época; o segundo satirizando a “fraseologia” do jornalismo vienense do seu tempo), haveria de observar a vulgar intromissão de algumas palavras formadas com um prefixo de sentido negativo: o prefixo dis. Duas delas são tão antigas quanto as suas correspondentes de sinal positivo, mas a sua ocorrência era pouco frequente, já que pertenciam ao campo semântico de um discurso muito técnico ou erudito: refiro-me a distopia e disforia (utopia entrou cedo no uso corrente, tendo-se perdido de vista o sentido preciso que lhe deu o seu inventor, Thomas More). A terceira, disruptivo, é nossa contemporânea, emergiu triunfante da nossa circunstância, aqui e agora.
Quando, ainda perto de nós, o futuro era o horizonte para onde apontava o olhar político e nele se projectavam aspirações técnico-científicas sem a interposição de muitas sombras, era a palavra utopia que tinha alcançado extraordinários privilégios e se tinha generalizado muito para além do seu uso estrito, designando um discurso literário que consiste no jogo visionário de “construir” um espaço que ainda não existe em lado nenhum. Quanto à distopia, o seu uso só recentemente saltou a fronteira do jargão técnico-literário e irradiou na direcção das representações pessimistas mais comuns. Passou assim a ser possível encontrá-la na linguagem corrente.
Diferente é a história da disforia. Essa palavra, se a definíssemos à maneira dos verbetes do dicionário de Flaubert, viria acompanhada por esta injunção: «Acrescentar sempre de género.» «Disforia de género» é a declinação obrigatória que a palavra assumiu. Esquecida está a etimologia, a palavra grega phoria, que encontramos também em euforia e significa «levar», «transportar». A phoria jubilante associada à dança está presente em Nietzsche, especialmente no seu Dyonisos. O escritor espanhol trans Paul B. Preciado publicou em 2022 um livro monumental, pós-covid, que se chama Dysphoria Mundi. Aí, ele eleva a noção de disforia a uma dimensão planetária, a uma condição “somatopolítica” geral, em que o sofrimento é ao mesmo tempo índice de potência (não de poder) dos corpos vivos do planeta e do próprio planeta enquanto corpo vivo. Paul B. Preciado converte a disforia em insubordinação, dissidência, desidentificação. A isto se chama ter cuidado com as palavras, habitar criticamente a linguagem, não se deixar submergir pelos seus estereótipos e injúrias.
Fora de todo o hábito crítico está a palavra disrupção, que é hoje usada, para designar uma atitude que pretensamente vem perturbar a ordem estabelecida, marcando assim uma ruptura. Digo “pretensamente” porque até hoje nunca a palavra foi utilizada para designar algo verdadeiramente novo. Nunca a «disrupção» mudou o que quer que seja, limita-se a fazer passar por novo o que é, sem redenção, já antigo. Ouvimos disrupção ou disruptivo e imediatamente sabemos que estamos perante o "pseudo" ou o fake. A palavra disrupção, antes de se ter tornado um lugar-comum, tinha uma significação muito técnica: designava uma descarga eléctrica, provocada por um curto-circuito que desencadeia uma faísca; e também designava catástrofes naturais, acontecimentos traumáticos, tais como um tremor de terra ou um tsunami. Fazendo uma pesquisa no Google (com os devidos cuidados a que esta fonte de informação obriga, visitando diferentes sites), ficamos a saber que a palavra transitou desse uso técnico para o jargão da publicidade e dos negócios. Passou então a designar uma empresa ou um produto que, no seu sector, cria uma ruptura, opera no interior dele uma renovação radical. O que é verdadeiramente "novo”, nesta área, pode ser chamado disruptivo. Muito interessante é saber, através dessa breve pesquisa, que foi um homem da publicidade, o francês Jean-Marie Dru, que foi presidente do grupo de comunicação mundial TBWA, com sede em Nova Iorque, que registou a disrupção como uma marca registada em 36 países. Jean-Marie Dru é o autor de The Ways to New: 15 Paths to Disruptive Innovation.
Em Alice do Outro Lado dos Espelho, Alice interroga Humpty Dumpty, espantada por este alterar o sentido das palavras a seu bel-prazer, e recebe esta resposta: «The question is, which is to be master. That’s all» – a questão da linguagem está pura e simplesmente em saber quem manda.
Na imagem, o quadro de 1898 que foi pintado por Francis Barraud (1856-1924) e depois, em 1900, utilizado como símbolo da marca comercial His Master's Voice (A Voz do Dono), mais conhecida pela sigla HMV.
Artigo do professor universitrário e crítico literário português António Guerreiro, transcrito, com a devida vénia, do jornal Público de14 de junho de 2024. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.