Mais uma discussão sobre o Acordo Ortográfico, mais uma volta no carrossel da confusão, da chantagem emocional e do catastrofismo. Esgrimem-se todos os argumentos possíveis, da suposta inconstitucionalidade do acordo (negada pelos constitucionalistas) à «destruição virtual da própria noção de ortografia» (segundo Vasco Graça Moura) e, pasme-se, aos gastos que as famílias portuguesas terão de fazer em novos livros. Há quem fale em milhões de euros de prejuízos, como se a minha gente tivesse de destruir os livros velhos e trocar por livros novos toda a biblioteca de casa.Mais uma discussão sobre o acordo ortográfico, mais uma volta no carrossel da confusão, da chantagem emocional e do catastrofismo. Esgrimem-se todos os argumentos possíveis, da suposta inconstitucionalidade do acordo (negada pelos constitucionalistas) à «destruição virtual da própria noção de ortografia» (segundo Vasco Graça Moura) e, pasme-se, aos gastos que as famílias portuguesas terão de fazer em novos livros. Há quem fale em milhões de euros de prejuízos, como se a minha gente tivesse de destruir os livros velhos e trocar por livros novos toda a biblioteca de casa.
Tenham lá calma. Um Acordo Ortográfico que muda dois por cento das palavras que nós escrevemos (e um por cento das que os brasileiros escrevem) não obriga a trocar a biblioteca, não destrói a noção de ortografia e não impõe um totalitarismo unitário sobre a língua. O acordo não é uma catástrofe nem um milagre. Mas a sua não-adopção teria alguns custos sérios e neles ninguém parece pensar.
Aquando das comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil, a comissão conjunta luso-brasileira emitia frequentemente dois comunicados, um em cada ortografia. É natural: o Estado português não pode escrever os seus documentos oficiais na ortografia brasileira, nem vice-versa. Ora, se isto se passa entre comissões de dois países que falam a mesma língua, imaginem as dificuldades de afirmação do português em instituições internacionais.
Há hoje uma concorrência feroz entre línguas, e nem falo do inglês ou do espanhol, que estão noutra divisão. Entre numa livraria francesa e veja o que está escrito nas capas dos romances de Machado de Assis: «Traduit du brésilien.» A ideia horrorizaria o grande escritor do Rio de Janeiro. Mas qualquer sugestão de que o brasileiro é um idioma à parte do português é ali muito bem-vinda (seria uma heresia para o francês do Québec, claro), porque aí seríamos numericamente ultrapassados não só pelo francês, como pelo russo e por outras línguas ainda. A impossibilidade de chegar a acordo sobre a ortografia oficial do português é um presente que oferecemos à concorrência.
A ortografia do acordo já foi discutida e rediscutida à minúcia. Vejamos agora a palavra que tem escapado: acordo. Sim, isto é um acordo. Nós mudamos algumas coisas e os brasileiros outras, como é natural num acordo. Nós não gostamos de algumas mudanças, e eles não gostam de outras: os lamentos de alguns intelectuais brasileiros por perderem definitivamente o trema em lingüiça (por culpa dos antigos colonizadores!) estão ao nível do conservadorismo dos seus homólogos portugueses.
Se não houver acordo, cada país faz o que quer. Ora, se as mudanças na nova ortografia serão de dois para um a favor dos brasileiros, eles levam uma vantagem de 18 para um na população. Daqui a uns anos Angola adoptará a ortografia brasileira (já há quem o proponha), e depois Moçambique também. Dentro de uma geração Portugal terá dois caminhos: isolar-se ou seguir sem discussão o que os brasileiros decidirem. Triste fim depois de tantos pruridos.
in Público do dia 9 de Abril de 2008