«(...) Foi, pois, com muita tristeza que vimos o atual presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Artur Anselmo, atuar nos últimos tempos, em movimentações públicas, primeiro, para tentar reverter o Acordo Ortográfico, e depois, vendo que tal era impossível, a apadrinhar uma revisão atabalhoada, linguisticamente mal fundamentada e inoportuna, numa verdadeira afronta à memória da própria Academia e dos ilustres académicos e filólogos, dos dois lados do Atlântico, já falecidos, que tanto se esforçaram para que a língua portuguesa tivesse uma ortografia unificada. (...)»
1. Têm vindo constantemente a público afirmações, sistematicamente erradas e disparatadas, algumas até ofensivas, da parte dos que se opõem ao Acordo Ortográfico de 1990 (AO), que são sempre os mesmos e que não desistem, decerto acirrados pelo facto de ele já estar em vigor, sem problemas, em Portugal, no Brasil e em Cabo Verde, com aplicação prevista no sistema de ensino em Moçambique, no início de 2018, e em vias de implantação noutros países lusófonos, apenas com Angola a constituir a situação, de momento, mais problemática.
Lembramos, contudo, que a oposição a mudanças ortográficas tem sido constante ao longo da história da ortografia portuguesa. Damos apenas como exemplo a oposição à Reforma Ortográfica de 1911, que também se fez sentir ao longo de vários anos, como se pode verificar nos dois depoimentos destacados a seguir.
Um é o de D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, que fez parte da Comissão da Reforma, incluído nas suas Lições de Filologia Portuguesa (p.122):
«O público! Qual foi o acolhimento que fez à Reforma? Naturalmente as opiniões estão divididas. Houve e há entusiastas; críticos; indiferentes; e adversários. Reacionários rombos, avessos a todo e qualquer progresso, aos quais as quarenta e tantas regras mostraram, pela primeira vez, quantas e quais são as dificuldades da ortografia nacional, entendem que fomos nós que as inventámos, baralhando e complicando tudo. Constou mesmo que esses descontentes iam angariar assinaturas a fim de reclamar a revogação da portaria de 1 de setembro.»
O outro depoimento é de Agostinho de Campos, num texto intitulado “O caos gráfico”, incluído na “Introdução” ao 3.º vol. de Paladinos da Linguagem (pp. XIV-XVI):
«A oposição portuguesa ao decreto ortográfico arruma-se facilmente em dois compartimentos separados: oposição técnica e oposição artística. Gritou logo e gritou alto a primeira destas, sem esperar pela execução prática da lei, como fez a segunda. E a razão desta diferença de porte é muito simples: a oposição técnica foi ferida de chofre, pelo mero facto da promulgação oficial; a oposição artística, ao contrário, só preocupada de aspetos, não deu pela ofensa senão quando a transfiguração gráfica das palavras lhe feriu os olhos desagradavelmente. […]. Pela sua própria origem e natureza havia esta oposição [técnica ou de especialistas] de durar pouco, embora começasse por berrar muito. De mais a mais o Governo teve o judicioso cuidado de basear o seu decreto na opinião da maior e melhor parte dos técnicos; donde resultou que dois ou três, justa ou injustamente esquecidos, logo se anularam uns aos outros, este a vociferar que a reforma era tímida, outro a clamar que era temível. […]. Tendo começado mais tarde que a oposição técnica, a oposição artística durou mais e dura ainda. A sua mola não é a vaidade, nem o interesse, mas o hábito, quero dizer: Sua Majestade, o Hábito, rei que nunca foge do seu palácio, que nenhuma lei ou nenhuma revolução consegue depor, mas contra o qual atua desde sempre, embora devagar, um regicida lento, e todavia infalível, que é o Tempo. Os anos vão passando, alguns passaram já, e dentro em pouco, sem darem por isso, os próprios sebastianistas da grafia velha começarão a rir – de si mesmos, e da grande fúria que tiveram, quando ainda não estavam…habituados.»
Tanto um como o outro tipo de reações se têm verificado também na oposição ao Acordo Ortográfico de 1990.
Reavivando a memória…
2. Vamos agora tentar reavivar a memória do que foi a saga da procura de unificação ortográfica da língua portuguesa desde 1945, para não irmos a 1911, ano da grande reforma ortográfica do idioma, após quase três séculos de vigência de grafias pseudoetimológicas. Convém, no entanto, lembrar, que, se nessa ocasião o Brasil, o outro grande país de língua portuguesa, onde havia excelentes filólogos, como Afrânio Peixoto, Amadeu Amaral, Mário Barreto, Silva Ramos ou Sousa da Silveira, entre outros, assim como a Academia Brasileira de Letras, tivesse sido chamado a colaborar, como era de seu direito, hoje não andaríamos às turras com o Acordo Ortográfico.
O Acordo Ortográfico não foi uma iniciativa de meia dúzia de académicos “incautos”, como certos opositores querem fazer crer, antes tem atrás de si uma longa história. Lembremos, pois, embora de forma sucinta, os principais passos dessa história.
Em primeiro lugar, convém refletir sobre a razão por que o Brasil não acatou a Convenção Ortográfica de 1945, negociada na Academia das Ciências de Lisboa com a Academia Brasileira de Letras, no verão desse ano. É que a delegação portuguesa conseguiu impor os seus pontos de vista, comportando-se como se Portugal continuasse a ser o único dono da língua, querendo obrigar a que os brasileiros voltassem a reintroduzir as consoantes mudas em palavras como actor, director, redacção, etc. Pergunta-se se o bom senso não aconselharia antes que os portugueses, que já suprimiram tantas consoantes mudas ao longo da história da Língua, também suprimissem estas, uma vez que já não as articulavam.
Outro exemplo de imposição tem que ver com os acentos gráficos em palavras como António, cómodo, género, fémur, ónus, etc., que os brasileiros escreviam com acento circunflexo, por articularem a vogal tónica com timbre fechado. Também aqui a delegação portuguesa impôs o seu ponto de vista, obrigando os brasileiros a alterar o acento circunflexo para acento agudo, com o sofisma de que ali este acento só indicaria a vogal tónica e não o seu timbre. Quando numa convenção uma parte procura impor à outra os seus pontos de vista, o resultado é que ela não seja cumprida. Foi o que aconteceu.
3. É claro que o falhanço da Convenção de 1945 para a obtenção da unificação ortográfica provocou uma grande frustração, não só nas duas Academias, em particular, mas também nos filólogos e linguistas portugueses e brasileiros, em geral. Por isso, no 1.º Simpósio Luso-Brasileiro sobre a Língua Portuguesa Contemporânea, realizado em Coimbra, em 1967, foi apresentada, discutida e aprovada, uma nova "Proposta para a Unificação da Ortografia Portuguesa", subscrita por seis filólogos e linguistas brasileiros (Antenor Nascentes, J. Mattoso Câmara, Sílvio Elia, Gladstone Chaves de Melo, Aryon Dall’Igna Rodrigues e Adriano da Gama Kury) e oito portugueses (Vitorino Nemésio, Jacinto do Prado Coelho, L. F. Lindley Cintra, Maria de Lourdes Belchior, Álvaro J. da Costa Pimpão, M. de Paiva Boléo, A. da Costa Ramalho e José G. Herculano de Carvalho). Esta proposta foi incluída nas Atas do Simpósio, publicadas em Coimbra, em 1968 (Vide, a este propósito, Ivo Castro et al., Demanda da Ortografia Portuguesa (pp.180-183).
O «problema das “consoantes mudas”»
O 1.º ponto desta proposta diz respeito ao «Problema das ‘consoantes mudas’, abolidas no Brasil, parcialmente conservadas em Portugal», como em ótimo, otimismo, ator, atuar, inspetor, ação, seleção, etc., por oposição a óptimo, optimismo, actor, actuar, inspector, acção, selecção, etc. Em relação a este ponto, foi aprovada pelos mencionados subscritores, apenas com o voto contra de Costa Pimpão, a seguinte decisão, que se transcreve de Ivo Castro (op. cit., pp. 180-183):
«Que se siga a prática brasileira, aumentando apenas a lista dos ‘vocábulos cujas consoantes facultativamente se pronunciam’ (acrescentando, por exemplo, facto e fato). Com efeito, a vantagem de conservar a ‘letra muda’ para indicar que é aberta a vogal anterior átona é uma vantagem mínima, se considerarmos:
a) Que ela não compensa o inconveniente, bem mais grave, da disparidade das grafias em Portugal e no Brasil, e que é insensato pretender levar um brasileiro a escrever actor e acção já que, mesmo sem o c ‘mudo’, as grafias ator e ação representam fielmente a sua pronúncia […].
b) Que escrevemos em Portugal padeiro, corar, caveira, credor, geração, quaresmal, sarmento, especar, especular, aguar, aguadeiro, aguaceiro, esfomeado, retaguarda, agachar, relator, dilação, retrovisor e uma infinidade de outras palavras, sobretudo de carácter culto, mas em grande parte generalizadas, com vogais átonas abertas, não assinaladas por ‘letra muda’, nem qualquer outro sinal gráfico, sem que isso cause perturbação […]».
O 2.º ponto daquela proposta tinha que ver com o «Uso no Brasil de acento circunflexo na distinção de homógrafos, abolido em Portugal» em palavras como acêrto (s.)/acerto (v.), êle, êles, êste, êstes, êsse, êsses, aquêle, aquêles, tôda, tôdas, etc., por oposição às correspondentes formas sem acento usadas no contexto português. Neste ponto a decisão é que se adote no Brasil a prática seguida em Portugal, ou seja, abolindo aqueles acentos.
O 3.º ponto da mesma proposta referia-se ao «Uso no Brasil – não uso em Portugal – do trema sobre o u nas sequências qu, gu antes de e e i para indicar que a letra u representa um fonema real: agüentar, argüição, argüimos, averigüemos, etc.» A decisão aqui tomada é que só se use facultativamente o trema em livros didáticos ou palavras menos frequentes, para assinalar a pronúncia do u.
O 4.º ponto abrange a divergência de acentuação gráfica em palavras proparoxítonas (ou falsas proparoxítonas), como Antônio, monômio, homônimo, fenômeno, gênero, lêmure, etc., do lado do Brasil, por oposição às correspondentes formas com acento agudo, da parte de Portugal. A decisão tomada neste caso é que se suprimam totalmente os acentos gráficos nas palavras esdrúxulas, visto que a divergência não é só gráfica, mas também fónica. Com esta supressão dos acentos, conseguir-se-ia a unificação gráfica sem desvirtuar a pronúncia diferenciada de um lado e doutro.
O 5.º e último ponto da proposta refere-se à «necessidade de atenuar tanto quanto possível as dificuldades que um sistema ortográfico complexo opõe à alfabetização», pelo que os subscritores recomendam que se empreendam estudos conducentes à promoção de «maior simplificação do sistema ortográfico unificado».
Se nos ativemos tanto tempo na análise desta proposta e das decisões que ela implica, é porque ela constituiu o ponto de partida para as iniciativas que subsequentemente foram tomadas, quer no Brasil, quer em Portugal, nomeadamente quanto à supressão das consoantes mudas, à aceitação de duplas grafias e à eliminação de acentos gráficos. Vejamos então a sequência dessas iniciativas.
70 % das divergência das duas ortografias oficiais
4. Logo em 1971, o Brasil tomou uma iniciativa que se revelou da maior relevância para a unificação ortográfica. Assim, através da Lei n.º 5765, de 18 de dezembro desse ano, decidiu abolir os acentos gráficos mencionados no 2.º ponto da proposta do Simpósio de Coimbra, acima mencionado. Conforme diz Ivo Castro (op. cit., p.184), «segundo amostragens levadas a efeito pela Academia das Ciências de Lisboa, aquele uso chegava a ser responsável por cerca de 70 por cento das divergências entre as duas ortografias oficiais».
No seguimento desta iniciativa do Brasil, em 1973, Portugal, por aconselhamento da Academia das Ciências e não só, determinava, através do decreto-lei n.º 32/73, de 6 de fevereiro, a abolição dos acentos grave ou circunflexo nos advérbios em -mente e nos vocábulos com sufixo começado por z, como, por exemplo, em comodamente, solidamente, avozinha, sozinho, ou cortesmente, portuguesmente, avozinho, bibelozinho.
5. Em 1975, a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras tinham já completamente elaborado um Projeto de Acordo, em cuja Base VI se estipulava o seguinte (cf. Ivo Castro, op. cit., pp. 189-190):
«O c gutural das sequências interiores -cc- (segundo c sibilante), -cç- e -ct-, e o p das sequências interiores -pc- (c sibilante), -pç- e -pt-, ora se eliminam, ora se conservam.
Assim:
1.º) Eliminam-se nos casos em que são invariavelmente mudos, quer na pronúncia portuguesa, quer na brasileira: aflição, aflito, dicionário, absorção, cativo, ação, acionar, ator, afetivo, coletivo, diretor, adoção, adotar, batizar, ato, exato, Egito, ótimo, etc.
2.º) Conservam-se nos casos em que são invariavelmente proferidos, quer na pronúncia portuguesa, quer na brasileira: compacto, convicção, convicto, ficção, fricção, friccionar, pacto, pictural, adepto, apto, díptico, erupção, inepto, eucalipto, núpcias, rapto, etc.
3.º) Conservam-se ou eliminam-se, facultativamente, quando só se proferem em Portugal ou só no Brasil, quer geral, quer restritamente, ou então quando em ambos os países oscilam entre a prolação e o emudecimento: facto e fato, cacto e cato, caracteres e carateres, peremptório e perentório, aspecto e aspeto, ceptro e cetro, comsumpção e consunção, corrupto e corruto, sumptuoso e suntuoso, dicção e dição, sector e setor, etc.
4.º) Quando, nas sequências interiores -mpc-, -mpç- e -mpt-, se elimina o p, de acordo com o determinado nos parágrafos precedentes, o m passa a n, escrevendo-se, respetivamente, -nç-, -nç- e -nt-: assumptível e assuntível, assumpção e assunção, peremptório e perentório, sumptuoso e suntuoso, sumptuosidade e suntuosidade, etc.”
Conforme se pode verificar, através do que é estipulado nesta Base, as opções tomadas no AO sobre as consoantes mudas ou proferidas, facultativamente, e a consequente dupla grafia, já estavam contempladas neste Projeto de 1975, que só não se concretizou nessa data, devido à situação criada pelo 25 de Abril.
6. Em maio de 1986, por iniciativa do então Presidente brasileiro, José Sarney, membro da Academia Brasileira de Letras, com o apoio desta Instituição e sob a orientação do filólogo António Houaiss, também académico, realizou-se no Rio de Janeiro um encontro sobre a questão ortográfica, com a participação de uma delegação da Academia das Ciências de Lisboa, representando Portugal, e delegações dos países africanos lusófonos, com exceção da Guiné-Bissau, cujo delegado não chegou a comparecer, por motivos logísticos. Timor-Leste estava, infelizmente, sob ocupação indonésia e, portanto, não era ainda um país independente. Também participou, neste encontro do Rio de Janeiro, uma delegação da Galiza, como observadora, e uma representante da União Latina. O Presidente José Sarney tomou a iniciativa deste encontro, por estar sensibilizado para a questão ortográfica, como membro da Academia Brasileira de Letras, e ser conhecedor do Projeto de Acordo de 1975, acima mencionado. Temia de certo modo, como muitos outros, que, não havendo uma ortografia unificada para o português, a independência dos jovens países africanos, que emergiram da descolonização portuguesa e adotaram este idioma como sua língua oficial, pudesse conduzir ao surgimento de maior variação ortográfica.
O encontro do Rio de Janeiro realizou-se de 6 a 12 de maio de 1986 na Academia Brasileira de Letras e era aberto à comunicação social. A base de que se partiu para a unificação ortográfica possível foi o já referido Projeto de Acordo de 1975, o qual tem, aliás, em linha de conta as propostas e conclusões do também mencionado Simpósio de Coimbra. Podemos dizer que as alterações mais significativas do Acordo de 1986 abrangiam a supressão de consoantes mudas, a fixação de duplas grafias, a eliminação de acentos gráficos e a adoção de regras simplificadoras para o uso do hífen. A supressão de consoantes mudas em palavras como acção, direcção, arquitecto, excepto, óptimo afetava a ortografia vigente do lado de cá do Atlântico e constituía um apelo do mais elementar bom senso, há muito tempo reclamado, em favor da unificação ortográfica. A dupla grafia foi aceite em situações perfeitamente cristalizadas dos dois lados do Atlântico, como, por exemplo, em contactar/contatar, facto/fato, indemnização/indenização. A existência de dupla acentuação gráfica em palavras esdrúxulas, como António/Antônio, blasfémia/blasfêmia, fenómeno/fenômeno, género/gênero, ou em palavras graves, como bónus/bônus, fémur/fêmur, Fénix/Fênix, vómer/vômer, conduziu, não havendo outra solução mais adequada de unificação ortográfica, à supressão drástica dos acentos gráficos em todas as palavras esdrúxulas e graves, o que constituiu uma das decisões posteriormente mais contestadas em Portugal, com alguns argumentos ponderosos, e que obrigou à revisão do Acordo aqui conseguido. Quanto às alterações nas regras de uso do hífen, ditadas pela necessidade de simplificação e de maior adequação a práticas já correntes, adotou-se no Acordo uma significativa redução do emprego do hífen, tanto nas palavras compostas, como nos vocábulos formados por prefixação. Também aqui houve posteriormente em Portugal uma forte oposição, largamente justificada, a algumas das soluções adotadas, o que reforçou a necessidade de revisão daquele Acordo.
A correção dos excessos e incongruências de 1986
7. O Acordo Ortográfico de 1990 foi, pois, essencialmente ditado pela necessidade de corrigir alguns excessos e incongruências do Acordo de 1986, conseguido no já mencionado encontro do Rio de Janeiro. Veja-se também, quanto às reações a este Acordo, o já mencionado livro de Ivo Castro. Foi, por isso, que, logo em meados de 1987, na Academia das Ciências de Lisboa, tomámos a iniciativa de elaborar um novo projeto de Acordo, de o apresentar à Academia Brasileira de Letras, instituição representante do Brasil, assim como às entidades competentes dos outros países lusófonos. Eu próprio fui encarregado pela Academia de levar a cabo a elaboração do novo projeto, com o apoio do académico Lindley Cintra e, especialmente, dos confrades da secção de Filologia e Linguística da Classe de Letras que também tomaram parte no encontro do Rio de Janeiro. No trabalho de preparação deste novo projeto, tivemos o apoio de dois bolseiros, financiados pelo então Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (ICALP), presidido por Fernando Cristóvão, que também fez parte da delegação portuguesa no encontro do Rio de Janeiro. Na preparação deste novo projeto, procedemos à recolha das diversas críticas construtivas feitas ao Acordo de 1986, nomeadamente a supracitada obra de Ivo Castro, logo que ela veio a público, e realizámos diversas análises estatísticas, baseadas num corpus de 110 000 palavras representativas do léxico geral da língua, as quais nos permitiram quantificar e ilustrar diversas opções tomadas no projeto e que posteriormente utilizámos na elaboração de uma “Introdução justificativa” das propostas apresentadas, a qual passou depois a ser designada como “Nota Explicativa” e veio a acompanhar, em anexo, o texto do Acordo Ortográfico de 1990. Repare-se que esta extensa “Nota Explicativa”, por mim idealizada, constitui uma inovação relativamente a todos os acordos anteriores.
Em fins de 1988, o novo projeto de Acordo estava concluído e passou a ser designado como “Anteprojeto de Bases da Ortografia Unificada da Língua Portuguesa (1988)”, o qual foi levado depois ao conhecimento do Brasil e dos países africanos lusófonos, por via diplomática e com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura, então órgão tutelar da Academia das Ciências, liderado por Pedro Santana Lopes. No primeiro semestre de 1990, eu próprio fui encarregado pela Academia das Ciências, com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura, de explicar in loco o referido Anteprojeto e de recolher eventuais sugestões de alteração, junto das entidades competentes dos países africanos e também do Brasil, neste caso, da Academia Brasileira de Letras. Nas viagens que realizei a estes países, contactei com várias instituições, procurei esclarecer as dúvidas suscitadas, apurei sugestões de alteração e pude verificar que o Anteprojeto era, em geral, bem compreendido e bem aceite. E assim se preparou um novo encontro em Lisboa, realizado na Academia das Ciências, de 6 a 12 de outubro de 1990, para aprovação final do novo Acordo Ortográfico. Neste encontro participaram as seguintes delegações:
Angola: Filipe Silvino de Pina Zau.
Brasil: António Houaiss e Nélida Piñon.
Cabo Verde: Gabriel Moacyr Rodrigues e Manuel Veiga.
Guiné-Bissau: António Soares Lopes Júnior e João Wilson Barbosa.
Moçambique: João Pontífice e Maria Eugénia Cruz.
Portugal: a) da Classe de Letras da Academia das Ciências: Américo da Costa Ramalho, Aníbal Pinto de Castro, João Malaca Casteleiro, José Vitorino de Pina Martins, Luís Filipe Lindley Cintra, Manuel Jacinto Nunes e Maria Helena da Rocha Pereira; b) da Classe de Ciências da Academia: António Vasconcelos Marques, Fernando Roldão Dias Agudo e José Tiago de Oliveira; c) em representação do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (ICALP): Fernando Cristóvão.
São Tomé e Príncipe: Albertino dos Santos Bragança e João Hermínio da Silva Pontífice.
Galiza (delegação de observadores): António Gil Hernández e José Luís Fontenla.
Foram todos estes nomes que apuseram a sua assinatura nos dois documentos aprovados neste encontro, com a data de 12 de outubro de 1990, ou seja, “Projeto de Ortografia Unificada da Língua Portuguesa (1990)” e “Introdução ao Projeto de Ortografia Unificada da Língua Portuguesa (1990)”. Em anexo, em baixo, deixamos ilustradas as cópias das respetivas 1.ª e última páginas .
Estes documentos, após a sua aprovação linguística, foram encaminhados para a Secretaria de Estado da Cultura. O então secretário de Estado, Pedro Santana Lopes, convocou posteriormente os titulares da Cultura dos outros países lusófonos para uma reunião, que se realizou no Palácio da Ajuda, em Lisboa, em 16 de dezembro de 1990, na qual se procedeu à aprovação política destes mesmos documentos.
Nesta mesma reunião, foi aprovado pelos titulares da Cultura dos sete países um instrumento de resolução, em cujo Artigo 3.º se estipula: «O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor em 1 de janeiro de 1994, após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa.” No Artigo 2.º deste mesmo instrumento estabelece-se que «Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 de janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa [...].»
O (demorado) processo de ratificação
8. Infelizmente, a ratificação do AO pelos Estados, como determinava o mencionado instrumento de resolução, não se processou como aí era estipulado. Apenas Portugal e Cabo Verde o ratificaram dentro do prazo estabelecido. Assim, o AO foi aprovado na Assembleia da República, em 4 de junho de 1991, por todos os partidos com assento parlamentar, apenas com a abstenção do Partido Comunista Português. Foi depois ratificado pelo Presidente da República em 7 de agosto seguinte e publicado no Diário da República em 23 do mesmo mês. Cabo Verde aprovou o AO logo em 1/4/1991, através do decreto-lei n.º 26/91. O Brasil só ratificou o AO em 18 de abril de 1995.
O processo de ratificação exigia de Portugal uma condução política eficaz e persistente junto dos outros países. Pedro Santana Lopes, enquanto secretário de Estado da Cultura entre 1990 e 1994, bem se empenhou neste processo. Logo após a ratificação do AO por Portugal, deslocou-se ao Brasil em agosto de 1991, viagem em que tive a honra de o acompanhar, em representação da Academia das Ciências, levando, entre os vários objetivos da sua missão cultural, também o de pressionar junto das entidades governamentais, nomeadamente o então ministro da Cultura, António Houaiss, a confirmação do Acordo. Infelizmente e apesar deste esforço, o Brasil só o veio a ratificar em 18 de abril de 1995. Com a saída de Pedro Santana Lopes do Governo, em 1994, o processo de ratificação ficou parado.
Convém aqui lembrar que a necessidade de um organismo supranacional que coordenasse a política da Língua e implementasse o AO foi bem sentida pela Academia das Ciências. De facto, no já mencionado encontro do Rio de Janeiro, em maio de 1986, apresentou uma proposta de criação de um “Conselho Internacional da Língua Portuguesa”, num documento basilar e de grande atualidade, que foi aprovado por unanimidade pelas delegações presentes, ficando estas incumbidas de o submeter à consideração dos respetivos Governos.
Estava, pois, aqui o gérmen do que viria a ser o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), cuja proposta de criação veio, afinal, a ser apresentada, em 1989, pelo Presidente do Brasil, José Sarney, durante a primeira cimeira dos Chefes de Estado dos países lusófonos, realizada no Brasil, em São Luís do Maranhão. Todavia, a criação efetiva deste Instituto só ocorreu em 20 de maio de 2002, na cidade da Praia, em Cabo Verde, por ocasião da VI Reunião Ordinária do Conselho de Ministros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), realizada em São Tomé e Príncipe. A CPLP tinha, por sua vez, sido instituída em 17 de julho de 1996, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, na Cimeira de Chefes de Estado e de Governo dos então sete países lusófonos, expressamente reunida para esse efeito, e após um longo processo de maturação, no qual se destacou o Embaixador do Brasil em Lisboa, José Aparecido de Oliveira. Nestas reuniões foi decidido que a CPLP teria a sua sede em Lisboa e que o IILP ficaria instalado na cidade da Praia. Na mencionada reunião de 2002, em São Tomé, Timor-Leste foi também acolhido na CPLP, após ter conquistado a independência.
A emergência do IILP e o Plano de Ação de Brasília
9. O IILP, após vários anos em estado mais ou menos letárgico, emerge ativo, a partir de 2010, sob a dinâmica liderança do novo diretor executivo, o linguista brasileiro Gilvan Müller de Oliveira, concentrado na realização do Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa, documento que foi aprovado na 1.ª Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, efetuada em Brasília, entre 25 e 27 de março de 2010, e na qual tivemos a honra de participar, conjuntamente com a delegação portuguesa, que ia tomar parte no 10.º Colóquio Internacional da Lusofonia, realizado de seguida em Santa Catarina. A Conferência de Brasília constituiu um acontecimento inovador na atuação da CPLP, que pela primeira vez, visa dar corpo a uma política da Língua, definida em comum por todos os países lusófonos. Dois dos grandes objetivos do Plano de Brasília são o apoio à implantação do Acordo Ortográfico nos vários países e a elaboração do Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa (VOC). A CPLP estabeleceu uma periodicidade de três anos para estas conferências, tendo a segunda sido realizada em Lisboa, em 29 e 30 de outubro de 2013, e a terceira em Timor-Leste, de 15 a 17 de junho de 2016.
Relembremos que o AO já se encontra plenamente em vigor em Portugal, no Brasil e em Cabo Verde e que começará a ser aplicado em Moçambique, em janeiro de 2018, no início do próximo ano letivo. Nos outros países segue os seus trâmites, conforme a dinâmica de cada um, não tendo nenhum deles posto em causa o AO ou querendo efetuar a sua revisão. Poderão alguns estranhar que a sua plena implantação leve tanto tempo, mas a verdade é que, apesar de aprovado em 1990, só depois da criação da CPLP, em 1996, começa a definir-se um caminho para a sua aplicação. De qualquer modo, desde essa data decorreram só vinte anos, envolvendo oito países, o que é muito pouco, comparativamente com os cem anos de escaramuças ortográficas, apenas entre dois, Portugal e Brasil.
Quanto ao VOC, a sua elaboração tem sido mais rápida e eficiente, graças à dinâmica de Gilvan de Oliveira, diretor executivo do IILP entre 2010 e 2014, e à eficácia de Marisa Mendonça, professora moçambicana que lhe sucedeu no cargo, a partir de 2014. Foi fundamental, para a elaboração do VOC, o convénio técnico celebrado entre o IILP e o Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), de Lisboa, no qual têm desempenhado funções de relevo a sua vice-presidente e coordenadora de investigação Margarita Correia e o investigador José Pedro Ferreira. O ILTEC, também responsável pela elaboração do Vocabulário Ortográfico Nacional da Língua Portuguesa, por solicitação do Governo, disponibilizou ao IILP a sua plataforma digital para albergar o VOC. Foi também muito relevante para o eficiente funcionamento do IILP que em cada país lusófono tenha sido criada uma Comissão Nacional da Língua Portuguesa, que promove as tarefas necessárias à prossecução dos projetos estabelecidos e está representada no Conselho Científico do mesmo Instituto.
O VOC já alberga os vocabulários nacionais de Portugal, do Brasil, de Cabo Verde, de Moçambique e de Timor-Leste. O vocabulário nacional de São Tomé e Príncipe encontra-se já elaborado e apenas aguarda a aprovação oficial, que se atrasou por causa da recente mudança governamental. O de Angola está prometido para 2018 e o da Guiné-Bissau encontra-se atrasado, devido à situação política que o país atravessa. A inclusão dos que faltam verificar-se-á logo que estejam concluídos. A apresentação pública do VOC, nesta fase, ou seja, com os cinco vocabulários nacionais já concluídos, efetuou-se na cidade da Praia, no dia 12 de maio p.p.. Este projeto constitui a melhor prova de que é possível promover uma política de Língua participada por todos os países lusófonos.
10. Em conclusão, tanto o Acordo Ortográfico como o Vocabulário Ortográfico Comum seguem o seu curso, alheios aos entraves que lhes vão sendo levantados em várias latitudes. Foi, pois, com muita tristeza que vimos o atual presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Artur Anselmo, atuar nos últimos tempos, em movimentações públicas, primeiro, para tentar reverter o Acordo, e depois, vendo que tal era impossível, a apadrinhar uma revisão atabalhoada, linguisticamente mal fundamentada e inoportuna, numa verdadeira afronta à memória da própria Academia e dos ilustres académicos e filólogos, dos dois lados do Atlântico, já falecidos, que tanto se esforçaram para que a língua portuguesa tivesse uma ortografia unificada. O AO foi aprovado por todos os países de língua portuguesa, constitui um tratado internacional que deve ser respeitado por todos e não pode ser modificado unilateralmente. Foi, por isso, que o Governo, pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, veio logo a público declarar que não aceitava revisões unilaterais. Também as entidades governamentais de outros países, nomeadamente de Angola e de Moçambique, vieram confirmar que não queriam rever o Acordo.
A língua portuguesa merece uma ortografia unificada, requer que defendamos a sua unidade essencial, para que continue a ser o instrumento de comunicação entre os 275 milhões de falantes atuais, espalhados pelos oito países lusófonos, pela Galiza e por Macau, pelas diásporas lusofalantes que habitam nos vários cantos do Mundo, e que é objeto de estudo e de investigação em centenas e centenas de instituições escolares, nos vários continentes, e também língua de trabalho em múltiplas organizações internacionais. Lutemos, pois, pela defesa da sua unidade essencial, para que ela continue a ser o instrumento de comunicação dos 387 milhões de falantes, em meados deste século, e dos 487 milhões, em 2100, segundo as previsões demográficas expressas no Novo Atlas da Língua Portuguesa, de Luís Reto e outros autores.
Referências bibliográficas citadas:
1. Campos, Agostinho de (Org.), Paladinos da Linguagem, vol. 3, Livrarias Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1923.
2. Castro, Ivo, et al., A Demanda da Ortografia Portuguesa. Comentário do Acordo Ortográfico de 1986 e subsídios para a compreensão da Questão que se lhe seguiu, Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1987.
3. Diário da República, I Série-A, N.º 193, 23-8-1991.
4. Reto, Luís Antero, et al., Novo Atlas da Língua Portuguesa, Edição apoiada por Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, Lisboa, 2016.
5. Vasconcelos, Carolina Michaëlis de, Lições de Filologia Portuguesa, Dinalivro, Lisboa, s. d.
N.E. – Cf. Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990): o desfecho indispensável de uma história interminável (e II), de Rolf Kemmler + História da Ortografia Portuguesa.
Anexo
Os dois documentos subscritos da aprovação final do Acordo Ortográfico
na Academia das Ciências de Lisboa, no dia 12 de outubro de 1990
Cf. Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico + Sobre o Acordo Ortográfico de 1990 e o que (não) foi alterado com a nova reforma do português escrito