11 anos passados da entrada em vigor do Acordo Ortográfico em Portugal, como aceitar que quem o aplique – seja por opção pessoal (como é o caso da generalidade dos media que o seguem) ou por obrigação legal (os organismos públicos, dos ministérios às direções-gerais, do parlamento ao Diário da República, etc., etc.) – o faça de forma desleixada no cumprimento do que, de facto, mudou na ortografia? Não deveríamos ser rigorosos na aplicação das regras ortográficas, quer das anteriores às de 1990, quer em relação à grafia atual? Não será uma questão de falta de consciência linguística e cultural?
Nos primeiros tempos, era natural que surgissem dúvidas, confusões, mal-entendidos. Quem não aplica, porque discorda desta reforma, ainda se percebe que lhe passe ao lado as regras da nova grafia. Agora quem, por razões profissionais e no espaço público, tem a obrigação de não cometer erros só mesmo por desleixo e desprezo para com a sua própria língua não cumpre minimamente o que mudou e não mudou no uso do hífen, dos acentos ou das consoantes /c/ e /p/. Outra confusão recorrente (esta, alimentada pela desinformação dos que não aceitam o Acordo Ortográfico, sem saber minimamente do que escrevem): os antropónimos e os nomes, marcas comerciais e títulos registados, não mudaram a sua grafia original, conforme a Base XXI (Das assinaturas e firmas) do AO: «Para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume ou registo legal, adote na assinatura do seu nome. Com o mesmo fim, pode manter-se a grafia original de quaisquer firmas comerciais, nomes de sociedades, marcas e títulos inscritos em registo público.»
Outra imprecisão muito comum é quanto ao rigoroso uso das maiúsculas e das minúsculas. Basta consultar a Base XIX do AO1 e perceber-se que, por exemplo, deve grafar-se diferentemente 25 de abril (dia do mês, com minúscula) e 25 de Abril (data histórica, com maiúscula).
Ainda por cima, havendo, como passou a haver – e como não havia antes do AO de 1990 –, tantos recursos e ferramentas linguísticas disponíveis graciosamente online, desde vocabulários, glossários, corretores ortográficos, espaços de esclarecimento variados? Até há um conversor automático (o Lince), de aplicação gratuita e de distribuição livre – instalável tanto para o Windows, o Mac OS X e o Linux – à medida dos mais preguiçosos... E quantos livros com as novas regras andam pelo mercado a baixo custo! A bem da verdade, nunca se falou tanto da língua portuguesa e nunca houve tanto empenho no seu ensino, tanta informação, tanta política de língua como agora, depois da aplicação do AO. Talvez, por muito sobejar, se desperdice, e uma língua tão rica como a nossa acabe por ser tão maltratada por quem a valorizar.
Para os oponentes mais agressivos da atual reforma do português escrito, já se sabe que tudo é por causa do «caos» instalado como AO – fazendo tábua rasa de todos os outros tantos erros primários que enxameiam os jornais e o audiovisual português, de puro défice de gramática. E, com o fim dos revisores e copidesques na imprensa (até em livros editados!)2, o que vai por aí de desleixo e ignorância!.. Já para não falarmos do péssimo uso da língua que anda à solta pelas redes sociais.
Saber escrever e falar português é uma obrigação de qualquer falante minimamente escolarizado e respeitador da sua própria imagem perante terceiros – siga a norma ortográfica que seguir.
Saber escrever e falar português é um sinal de prestígio social, de consciência social e de orgulho cultural.
1 O mesmo acontecia com a norma de 1945, com os dias da semana grafados já em minúscula, diferentemente de quando correspondesse a uma festividade religiosa. Por exemplo: «Hoje, sexta-feira...» e «Hoje, Sexta-Feira Santa/Sexta-Feira da Paixão).
2 Sobre os repetidos erros na imprensa portuguesa que nada têm que ver com o Acordo Ortográfico e, em particular, no jornal que mais ferozmente o contesta, Cf. Erros evitáveis, se.... + Lê-se e não se acredita + Onde pára o revisor? + Ei, anda alguém a ler isto? + Tratos de polé + Dois erros muito comuns na imprensa portuguesa + A responsabilidade acrescida da imprensa na promoção do português + Gralhas e erros indesculpáveis no Público + Mais gralhas e erros crónicos do Público + Erros ortográficos, pontapés na gramática, excesso de estrangeirismos…+ O recurso desnecessário aos estrangeirismos e o tremendismo verbo «arrasar» + Estrangeirismos, neologismos, tecnicismose vulgarismos na linguagem do jornal
N.E. (6/05/2019) – Fizeram-se algumas correções na sintaxe e na pontuação do texto. Também se suprimiu a frase que finalizava o segundo parágrafo: «Algo que não se encontrava consagrado na norma de 1945: Eça de Queiroz passou então a ter o apelido grafado Queirós, assim como sucedeu o mesmo com as Thereza/Teresa, com os Mello/Melo, com os Anastázio/Anastácio, com os Bordallo/Bordalo, e por aí adiante.» Na verdade, o Acordo Ortográfico de 1990 mantém o disposto na Base 50 do Acordo Ortográfico de 1945: «Para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume, adopte na assinatura do seu nome. Com o mesmo fim, pode manter-se a grafia original de quaisquer firmas comerciais, nomes de sociedades, marcas e títulos que estejam inscritos em registo público.»