Luís Filipe Lindley Cintra (1925-1991), importante figura da Linguística portuguesa da segunda metade do século passado e coautor da conhecida Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984), escreveu o texto que se segue, publicado no semanário Expresso em 28 de junho de 1986, ano de acesa polémica em Portugal à volta de uma proposta de acordo ortográfico então divulgada. Trata-se de um documento relevante para a história da ortografia do português, pois nele Lindley Cintra dá testemunho da sua perspetiva como membro da comissão negociadora da referida proposta, no contexto de um processo que conduziria à formulação do Acordo Ortográfico de 1990.
Na impossibilidade, no momento presente, de escrever um artigo propriamente dito que responda às mais importantes das intervenções que a recente assinatura do acordo ortográfico luso-brasileiro tem provocado e que vou acompanhando, tanto quanto possível, com a maior atenção, resolvi por agora limitar-me a divulgar e comentar um texto fundamental para uma apreciação justa do texto subscrito no Rio de Janeiro pelos sete países de língua oficial portuguesa e que, segundo me parece, é pouco conhecido e não tem sido citado nas referidas intervenções.
Trata-se do texto de uma moção assinada por alguns dos principais filólogos portugueses e brasileiros da época. Foi apresentada no Primeiro Simpósio Luso-Brasileiro sobre a Língua Portuguesa Contemporânea, que se reuniu na Universidade de Coimbra de 30 de Abril a 6 de Maio de 1967 e foi aprovado juntamente com algumas outras moções complementares, por todos os participantes presentes. Foi publicado no volume de Actas, editado pela Universidade de Coimbra em 1968, pp. 218-222. Como signatário deste documento conservo-me fiel à justificação que inicia o texto e à maior parte das propostas nele feitas. Como se verá, essas propostas, em quase todos os casos, incidem sobre os pontos de divergência entre as ortografias portuguesa e brasileira que o recente acordo procurou eliminar. E se a proposta 2 e, parcialmente, a proposta 3 não aparecem entre as divergências agora discutidas, é porque, entretanto, em 1971, o Governo brasileiro da altura resolveu aceitar essas propostas e transformá-las em lei, eliminando deste modo algumas das divergências então existentes, num gesto de boa vontade no sentido da, como se vê, já então tão desejada unificação da ortografia luso-brasileira.
A secção de Ciências Filológicas da Academia das Ciências de Lisboa procurou corresponder a este gesto, propondo ao Governo português (que aceitou a sugestão e também a transformou em lei) uma pequena modificação (supressão do acento grave ou circunflexo nas palavras derivadas), enquanto procurava reatar as negociações em vista de um novo acordo. Foi este o ponto de partida dos trabalhos de uma comissão então criada na Academia das Ciências, sob a presidência do prof. Gustavo Cordeiro Ramos e em que participaram o prof. Jacinto de Prado Coelho e eu próprio, tecnicamente apoiados pelo professor do ensino secundário dr. António Ribeiro dos Santos, que se pôs em contacto com a Academia Brasileira de Letras. De aí o período de trabalho sobre este tema que se efectuou entre 1971 e 1975.
Como adiante se verá, as restantes sugestões estão na base das soluções agora finalmente adoptadas. Creio que isto torna particularmente oportuna a sua divulgação.
«Preconceitos e hábitos arreigados»
«Os inconvenientes que resultam da diversidade ortográfica entre o Brasil e Portugal – começava por referir-se na moção aprovada em Coimbra há quase vinte anos – são demasiado evidentes para que seja necessário mencioná-los ou sequer acentuá-los de novo. Pode e, deve pois considerar-se indispensável e urgente que se chegue a um verdadeiro e eficaz acordo sobre tal matéria, ainda que para isso haja que sacrificar preconceitos e hábitos há muito adquiridos, os quais poderão causar uma inicial e compreensível estranheza perante uma ou outra das medidas a adoptar. Além da extrema conveniência de ordem prática, deve pesar-se nesta decisão que, sendo a grafia secundária em relação à oralidade e representação sempre meramente convencional desta, não é mais nem menos científica uma grafia simplificada, em que se renuncia a certos hábitos gráficos apoiados numa tradição mais ou menos longa, do que uma grafia dita etimológica, a qual, além disso, para o ser efectiva e coerentemente, exigiria o regresso puro e simples a outros hábitos há muito abandonados.
Em vista disto, resolvem os signatários submeter à apreciação dos colegas as seguintes propostas, que pensam poder servir de base para o trabalho de uma Comissão mista luso-brasileira, que eventualmente venha a ser criada pelas instâncias competentes para resolver o problema em causa».
(Des)vantagens da “letra muda”
Em seguida enumerava-se o problema das “consoantes mudas”, abolidas no Brasil e parcialmente conservadas em Portugal.
Era – é – o caso, no Brasil de ótimo, otimismo ou [optimismo]; ator, ativo, atuar...; inspetor, reator...; ação, reação, inspeção, acionar...; seleto, seleção, etc.
E em Portugal era – é – o caso de óptimo, optimismo; actor, activo, actuar...; inspector, reactor...; acção, reacção, inspecção, accionar...; selecto, selecção, etc.
«Que se siga a prática brasileira – propunham os signatários do texto-moção de Coimbra – aumentando apenas a lista dos vocábulos cujas consoantes facultativamente se pronunciam' (acrescentando, por ex., facto e fato).
«Com efeito, a vantagem de conservar a ‘letra muda’ para indicar que é aberta a vogal anterior átona é uma vantagem mínima, se considerarmos:
«a) – Que ela não compensa o inconveniente, bem mais grave, da disparidade das grafias em Portugal e no Brasil, e que é insensato pretender levar um brasileiro a escrever actor e acção já que, mesmo sem o c ‘mudo’, as grafias ator e ação representam fielmente a sua pronúncia. [a tor], [a são].
«b) – Que escrevemos em Portugal padeiro, corar, caveira, credor, geração, quaresmal, sarmento, especar, especular, aguar, aguadeiro, aguaceiro, esfomeado, retaguarda, agachar, relator, dilação, retrovisor e uma infinidade de outras palavras, sobretudo de carácter culto, mas em grande parte generalizadas com vogais átonas abertas, não assinaladas por ‘letra muda’, nem qualquer outro sinal gráfico, sem que isso cause qualquer perturbação.
«Quando muito, poderia restabelecer-se a título facultativo o uso do acento grave (òtimismo, àtuar, etc.), sobretudo para os raros casos de homografia (pègada e pegada, prègar e pregar) quando o contexto não seja por si suficiente para evitar o equívoco.»
Sobre o trema e o acento circunflexo
No ponto 2 debruçávamo-nos sobre o uso no Brasil do acento circunflexo na distinção de homógrafos, abolido em Portugal.
«No Brasil: acêrto m./ acerto v.; êle, êles; aquêle, aquêles; êste, êstes; êsse, êsses; fôsse (de ser e ir) fosse (de fossar); tôda, tôdas; sôbre; fôrma; etc., etc.”
«Em Portugal: acerto m. e v.; etc., etc.” E propunha-se: “Que se siga o uso de Portugal, embora deixando a faculdade de usar quer o acento circunflexo (para vogal fechada), quer o agudo (para vogal aberta) em casos em que o contexto não seja suficiente para evitar o equívoco, por exemplo: fôrma – fórma.»
Quanto ao uso no Brasil – não uso em Portugal – do trema sobre o u nas sequências qu, gu antes de e e i para indicar que a letra representa um fonema real: agüentar, agrüição [sic], argüimos, averigüemos, etc., etc.”, propunha-se: “Sendo conveniente, pelo menos em certos casos (livros didácticos, palavras de uso menos frequente, etc.) marcar graficamente esse valor representativo da letra u, deixe-se a faculdade de usar ou não o trema, escrevendo-se pois bilingüismo ou bilinguismo.”
«Nem para um lado nem para outro»
No ponto 4 assinalavam-se as divergências em torno dos «proparoxítonos (ou falsos proparoxítonos) em que a tónica está seguida de consoante nasal heterossilábica, sendo a vogal fechada no Brasil, e aberta em Portugal». Por exemplo: Antônio; monômio; homônimo; fenômeno; gênero; lêmure; etc. – utilizados no Brasil – e António, monómio, homónimo, etc., de Portugal. Daí a proposta: «Supressão total dos acentos gráficos nos esdrúxulos, já que a divergência não é meramente gráfica mas fónica. Deste modo se obteria a unidade sem falsear a realidade linguística, nem para um lado nem para o outro.»
Finalmente, no ponto 5, os 14 filólogos portugueses e brasileiros reunidos em Coimbra – Antenor Nascentes, J. Mattoso Câmara, Sílvio Elia, Gladstone Chaves de Melo, Aryon Dall’Igna Rodrigues, Adriano da Gama Kury, Vitorino Nemésio, Jacinto Prado Coelho, L.F. Lindley Cintra, Maria de Lourdes Belchior, Álvaro J. da Costa Pimpão (que se declarou vencido na questão das «consoantes mudas»), M. de Paiva Boléo, A. da Costa Ramalho e José Herculano de Carvalho – concluíam:
5. «Considerando a necessidade de atenuar, tanto quanto possível, as dificuldades que um sistema ortográfico complexo opõe à alfabetização, recomendar-se finalmente o empreendimento de estudos destinados a promover maior simplificação do sistema ortográfico unificado.»
in Expresso, 28 de Junho de 1986. O Cibedúvidas agradece à Professora Maria Helena Mira Mateus a gentileza de nos ter feito chegar este testemunho do mais reputado linguista português que integrou a comissão negociadora luso-brasileira para o Acordo Ortográfico, assinado em 16 de dezembro de 1990. Um texto histórico e de rara circulação nos dias que correm.