« (...) Se não há um grupo de gente, uma resistência [a Franco] que permite numas condições de total precariedade dar continuidade à cultura galega que florescera con tanto vigor nas décadas prévias ao golpe de Estado, o galego dissolver-se-ia, acabaria dialetalizado, converter-se-ia num "castrapo" [castelhano agalegado] irreconhecível como língua. (...)»
«O galego saiu ferido com gravidade do franquismo.» Assim considera Henrique Monteagudo, vice-secretário da Real Academia Galega (RAG) e professor da Universidade de Santiago, que acaba de publicar o estudo O idioma galego baixo o franquismo. Da resistencia á normalización (Galaxia), onde analisa a política linguística durante a ditadura e foca a resistência galeguista.
– Afirma no prólogo que aspira a contar só a verdade e nada mais que a verdade. Tão tergiversado está o que implicou o franquismo para o galego? Desconhecemo-lo assim tanto?
– Sim, desconhecemos muito. Em geral, há um desconhecimento por ignorância, pois, pela espécie de pacto do silêncio da Transición, houve uma tendência a evitar falar destas coisas. Mas também está a emergência dos discursos negacionistas, onde há uma espécie de rebeldia contra a verdade, dizendo que não se perseguiu o galego, que o franquismo tão-pouco foi assim tão mau... É algo que provoca assombro e indignação a quem o viveu. Também é uma questão que me preocupa muito.
– Fora da esfera pública e do sistema educativo, não se podiam pôr nomes galegos a locais... Quais são as medidas que considera mais terem minado o galego durante o franquismo ?
– Neste período há que distinguir etapas. As medidas não são as mesmas na década dos 40 e no franquismo final. As maneiras de perseguir o galego foram muito diferentes e a pressão também evoluiu para menos. Mas há questões de fundo que foram catastróficas para o galego. Por exemplo, tudo o que teve que ver com as políticas que desertificaram o meio rural, que provocaram a emigração, que foi muitíssimo maior durante o franquismo que antes. Toda uma cultura galega se esfarela, já que constituía un nicho muito importante para a lingua. Além disso, o progresso social durante este período não se pode dar sem uma assimilação ao castelhano. E também há outros elementos como os meios de comunicação de massas, sobretudo a rádio e a televisão. Antes de difundir-se, nas casas das famílias que falavam galego o castelhano não entrava. Havia só um canal de televisão, o do Regime, e com ele introduziam-se regras culturais e inculturais, valores de práticas linguísticas. Era meter o castelhano nas casas e, ao mesmo tempo, o desprezo pelo galego. E isso fez-lhe enorme estrago.
– E, perante isso, contrapõe a resistência linguística. Como seria hoje o galego sem a participação ativa de pessoas que inclusivamente, como o Henrique comentou, apostaram a vida por esse motivo?
– Nem existiria este livro nem estaríamos a conversar em galego. Se não há un grupo de pessoas, uma resistência que permite em condicões de total precariedade dar continuidade à cultura galega que florescera con tanto vigor nas décadas prévias ao golpe de Estado, o galego dissolver-se-ia, acabaría dialetalizado, converter-se-ia nun castrapo [castelhano agalegado] irreconhecível como língua. Não creio nin que houvesse Estatuto de Autonomia nem a mínima corrente de uso de galego culto. Foram essas pessoas que possibilitaram manter o fogo um pouco aceso. Trata-se da grande obsessão que elas tinham: transferir a tradição cultural à gente nova que estava a crescer num ambiente em que essa tradição estava totalmente invisibilizada.
– Alude a nomes como Ramón Piñeiro, Ricardo Carvalho Calero e Xesús Alonso Montero como autênticos forjadores de ideologias linguísticas, também se refere a Otero Pedrayo, à importância da Editorial Galaxia, da revista Grial... Se tivesse de destacar três marcos nessa resistência, quais seriam?
– Obviamente, Ramón Piñeiro, porque é o grande idealizador da resistência e o grande estratega. Mas também deve sublinhar-se que um grandíssimo sucesso destas pessoas foi o trabalho em equipa. Criaram equipas – estou a pensar sobretudo à volta da Galaxia –, que souberam combinar muito bem as tarefas conjuntas con o não apagamento do brilho individual. É geração brilhante a de Piñeiro, Del Riego, García Sabell, Fernández de la Vega, depois Xesús Alonso Montero... Estes nomes não são uma descoberta, mas fui encontrando mais, sobretudo mais à frente. Houve trabalho coletivo en associações que se criaram nos anos 60 e 70, mas também gente que deu grandes contributos, como Blanco Amor, Rafael Dieste ou indivíduos menos conhecidos... Mas devem mencionar-se três nomes emblemáticos, que são Otero Pedrayo, como o farol, o continuador; Piñeiro, como grande estratega; e Alonso Montero como o que soube dar continuidade a este movimento com parâmetros ideológicos muito diferentes.
– E pese embora toda esa resistência, na apresentação [do livro] sentenciava que o galego saiu ferido com gravidade do franquismo.
– Sim, saiu ferido com gravidade. Observa-se nos grandes números da evolução do uso linguístico e da transmissão da língua. Em meados do século, pela primeira vez, o bilinguismo habitual, o uso do castelhano, alcança proporções que nunca tivera. Muita gente de setores sociais que eran monolingues em galego começa a empregar o castelhano. Mas a isso deve acrescentar-se que há muita gente que se bilingualiza, portanto, não transmite o galego aos seus filhos e filhas. De facto, muitas dessas pessoas incorporaram o castelhano nas suas práticas linguísticas quando criaram uma família. Houve então uma grande rutura da transmissão intergeracional da língua. No final do franquismo, o galego ainda continuava a ser a língua maioritaria na fala – era em 75 % –, mas, se vemos por idades, essas percentagens já tinham caído muito nas gerações mais novas. O franquismo deixa unha desgaleguização muito acentuada, mas também existe a ferida enorme na consciência social, na imagem da língua, o desprestígio do galego. É um entrave que ainda está hoje presente, não nos iludamos.
– No livro alude ao trabalho dos galeguistas resgatando o galego da categoria de dialeto rústico, pobre e atrasado. A propósito do que diz do entrave, 40 anos depois ainda sobrevive essa conceção da nossa língua?
– Evidentemente que não na mesma medida que antes, mas ainda há setores importantes da nossa sociedade – se calhar não tanto pelo número, mas, sim, pela sua importância social – , para os quais o galego não é considerado uma língua. Há setores profundamente castelhanizados, que se sentem muito alheios ao galego e que não conseguem ver como pode o galego ser uma língua de verdade; são os que mais resistiram às políticas linguísticas a favor do galego e os que mais aderiram às políticas contra o galego. A maioria da sociedade galega não pensa assim, sobretudo os jovens. Muita gente nova, que pode ter boa competência en galego e que tem uma ideia do galego como língua de verdade, bonita, prestigiosa, não tem depois um contacto vital forte com a lingua porque já não a aprenderam na sua casa, já não se fala no seu meio... Podem, assim, ter uma boa imagem do galego e ter competências, mas o problema é que desapareceram as possibilidades de o empregar na sua vida real. Então aí o problema já é outro.
«Agora o desafio é ganhar consenso social ao redor da lingua»
Monteagudo analisa a situação do galego durante o período franquista, mas também olha mais para a frente, com incidência na situação atual. Em 2025. prevê completar a sua análise desde o ano de1975 até à atualidade.
– No trabalho regista que, se até 1975 o objectivo era a resistência, depois dessa data passou a ser a normalização. Alcançou-se essa normalização ou a laje da herança [a lousa da herdanza] do franquismo continua a ter demasiado peso?
– Não quero dizer que depois da morte de Franco se tivesse alcançado a normalização, quero dizer que durante o regime franquista, para os que se lhe opuseram, o único horizonte que havia era a resistência porque podiam sonhar com a normalização, embora soubessem que não ia ser possível. Em contrapartida, quando acabou o Regime, a nós legaram-nos esse horizonte utópico da normalização. Um horizonte muito difícil de alcançar, precisamente por causa da pesada herança que recebemos tanto no que se refere à realidade social do idioma como no que se refere aos imaginários sociais acerca da língua. Fomos bem-sucedidos ou não? O resultado é muito desigual. Alcançou-se muito menos do que acreditávamos conseguir. Alcançou-se bastante menos, com certeza, do que se podería ter atingido. Nalgumas coisas avançou-se muito, como em tudo o que é a estandardização da língua. Se observamos a qualidade do galego escrito hoje, em geral, vemos que é superior ao de há 40 anos. No galego falado, depende. Mas isto tem de ser relativizado. Há bastantes neofalantes, o que é muito bom, mas eles têm problemas sobretudo para falá-lo. Quanto à normalização social, quanto a âmbitos de uso, houve grande incremento: aí está a literatura florescente que temos. Mas depois, se nos centrarmos nas dinâmicas sociais da língua, não podemos estar nada contentes nem ser muito otimistas, e isso tem que ver com as políticas linguísticas que se fizeram: ou insuficientes, ou mal orientadas, ou, às veces, ineficazes.
– Faltam, então, novos "resistentes" na atualidade?
– Tornar-se-ia um tanto fantástico pensar que hoje a política é de resistência. Hoje, no contexto atual, não tem sentido falar de resistência. Os desafios hoje são de futuro, de ganhar as maiorias sociais, de ganhar consensos sociais em redor do idioma e de assegurar ações eficazes, comprometidas com a língua na área da Xunta, dos concelhos, das empresas, dos agentes sociais... Não chamaria isso uma política de resistência, mas antes proativa, uma capacidade de gerar projectos aliciantes, de modo a conquistar as maiorias sociais. Penso que na atualidade esse é o desafio porque o galego tem futuro. É verdade que as novas gerações estão a deparar-se com esse desafio – que é um desafio muito difícil, não quero dizer que é mais fácil que o da resistência –, mas é claro que se faz em condições muito diferentes. Ninguém vai para a cadeia por causa da língua galega. Há que saber lutar no contexto atual, numa sociedade aberta, democrática e em que o desafio é mudar as vontades e os anseios da maioria das pessoas, mas não temos de resistir a uma opressão. Pontualmente sim, porque ainda há algumas práticas repressivas contra o galego, mas é uma ou outra situação mais pontual, que não o quadro geral. O que podemos ver no livro é um exemplo de como as pessoas souberam organizar-se, souberam conciliar diferenças para procurar colaborações eficazes, com uma perspetiva de visão a longo prazo, com amplitude, e foram capazes de sair um pouco dos círculos pequenos e tentar encontrar cumplicidades na sociedade. Quer dizer, são estratégias ganhadoras o que temos que procurar e alcançar...
– Como se encontra agora o galego?
– Numa situação altamente preocupante. Não há muito tempo na Real Academia Galega apresentámos um estudo sobre a população escolar do concelho de Ames que faz un retrato muito cru duma realidade muito dura. As novas gerações têm problemas muito sérios para socializar en língua galega. Os indivíduos que não recebem o galego em casa não têm facilidade em encontrar espaços para aprender a utilizá-lo; e as pessoas que recebem o galego em casa ainda se veem obrigadas a deixá-lo em casa quando chegam ao sistema escolar, quando passam do ensino básico ao secundário... Vemos que esses mecanismos que em boa parte foram implantados pelo franquismo continuam a funcionar. Por outro lado, também vemos rapazes ou raparigas, que, embora não tenham adquirido o galego porque não o receberam ou tiveram de o abandonar, quando crescem, na adolescência, na juventude, quando chegam à universidade ou ingressam no mundo laboral, pois recuperam a língua. Creio que agora mesmo há novas gerações que estão a reencontrar-se com o galego, há uma enorme criatividade. Noto uma corrente a favor do galego entre a gente nova, inclusive entre a desgaleguizada, que me recorda a de quando eu era jovem. Com o fim do franquismo houve uma corrente fortíssima nos jovens, inclusive entre os que tinham estudos, que era a mais castelhanizada, uma corrente de simpatia, de galeguização... O movimento galeguista definia o rumo e as pessoas viam no galego un elemento de inovação, de criatividade... Estou a ver isso agora. Repare-se no fenómeno das Tanxugueiras.
– O futuro está, então, nos neofalantes e nos que se reencontram com a língua?
– Sim, o futuro está nestas novas gerações, que achem a maneira de reencontrar-se com o galego e descubram o galego como fonte duma identidade, mas de uma identidade feliz. Que sejam capazes de procurar um elemento de bem-estar cultural, de sentir-se em paz com o país, com a tradição cultural. Depois de discursos tão feios como os de há uma década, segundo os quais havia imposição do galego, hoje esses discursos aqui na Galiza não se vendem.
Entrevista publicada no jornal La Voz de Galicia em 31 de janeiro de 2022. Tradução/adaptação do original galego, o qual se encontra escrito conforme as normas da Real Academia Galega.