«(...) Todos os que, de algum modo, colaboraram com forças internacionais na tentativa de estabelecimento deste modelo de sociedade tornam-se agora alvos preferenciais da fúria "talibânica", da sua sede de vingança. Entre estes encontram-se os tradutores e os intérpretes afegãos, explicitamente mencionados por um porta-voz da Casa Branca como prioritários no salvamento em curso. E mais uma vez a realidade ultrapassa a ficção. (...)»
O filme The Interpreter (coprodução de Reino Unido, Estados Unidos e França, de 2005, realizada por Sydney Pollack) conta-nos a história de Silvia Broome, uma jovem e bela intérprete da ONU, nascida em Matobo, um daqueles países fictícios, de gente de pele escurinha, tão úteis à representação maniqueísta que os estado-unidenses fazem do mundo. Uma noite, ao regressar à sede da organização para recuperar alguns pertences, ela escuta dois indivíduos que planeiam um assassinato, usando uma das línguas indígenas de Matobo, que ela domina; ao aperceberem-se da sua presença, a vida de Silvia Broome fica em risco, alimentando todo o enredo deste thriller de desfecho previsível.
A história ficcional desta intérprete terá sido inspirada em alguma ou muitas histórias reais do mesmo tipo. A História regista algumas, mas muitas outras terão certamente ficado por contar. Todas elas, as ficcionais e as reais, constituem a prova do poder que o conhecimento de várias línguas pode conferir ao indivíduo, mas também dos perigos associados ao exercício desse poder.
O trabalho dos intérpretes é essencial aos governos, aos exércitos, aos empresários, e é crucial no funcionamento das organizações internacionais, como é caso da ONU. Os intérpretes têm um papel decisivo – sublinhe-se, decisivo – em qualquer negociação, e inevitavelmente na negociação da paz.
Fazer interpretação, simultânea ou consecutiva, é certamente um dos exercícios mais complexos que a mente humana é capaz de realizar: um intérprete ouve e processa um discurso numa língua e produz discurso equivalente em outra língua, em simultâneo ou com uma mediação temporal de segundos. Além de implicar o conhecimento profundo de pelo menos duas línguas, a interpretação carece de capacidade e velocidade de processamento linguístico e cognitivo reservada aos poucos que a adquiriram através de intensa e difícil formação específica e aos ainda mais raros que nasceram com este dom. Eu não faço parte deste exclusivíssimo clube, infelizmente.
Ao longo da semana passada, fomos assistindo ao avanço implacável dos talibãs no Afeganistão, em vésperas da data prevista para a saída total das tropas norte-americanas do país. Para muita gente, esta recuperação de posições estratégicas por parte dos talibãs apenas surpreende pela velocidade a que acontece. Ao longo da semana fomos vendo a saída prevista e organizada das tropas norte-americanas transformar-se em evacuação, em fuga desesperada dos civis norte-americanos em serviço no Afeganistão, mas também dos afegãos, sobretudo os residentes em zonas urbanas, que acreditaram na possibilidade de um Estado afegão, ao estilo ocidental, respeitador dos direitos fundamentais das pessoas, homens e mulheres. Todos os que, de algum modo, colaboraram com forças internacionais na tentativa de estabelecimento deste modelo de sociedade tornam-se agora alvos preferenciais da fúria "talibânica", da sua sede de vingança. Entre estes encontram-se os tradutores e os intérpretes afegãos, explicitamente mencionados por um porta-voz da Casa Branca como prioritários no salvamento em curso. E mais uma vez a realidade ultrapassa a ficção.
[Rapidamente], os talibãs tomaram Cabul e não disponho de palavras suficientemente eloquentes para dizer do pavor que por lá se há de ter instalado. Não surpreenderá se, em breve, a história trágica de um intérprete afegão vier a alimentar alguma produção cinematográfica.
Artigo publicado no Diário de Notícias em 16 de agosto de 2021.