Vinham em pequenas canoas, meninos e meninas, com fisionomia índia, entraram na escola, construída sobre troncos e águas, sem mobiliário. O então jovem António Sampaio da Nóvoa, que vinha de outro continente, e tinha percorrido milhares de quilómetros até chegar a Belém do Pará e depois ao delta do Amazonas, também lá estava de visita. “Sentámo-nos todos no chão, começámos a falar uns com os outros e entendemo-nos em português”, recorda. E foi esse “momento inesquecível” que lhe veio à memória quando, a 25 de novembro de 2019, na Conferência-Geral da UNESCO, foi proclamado o Dia Mundial da Língua Portuguesa a celebrar a 5 de maio.
Mensagens de escritores e artistas, mesas-redondas por videoconferência, um concerto online com músicos de vários países de expressão portuguesa são algumas das iniciativas, coordenadas pelo Instituto Camões, que agora vão assinalar, no espaço digital, dada a atual situação de confinamento decorrente da crise pandémica, o primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa (DMLP).
António Sampaio da Nóvoa, 65 anos, durante dois mandatos reitor da Universidade Clássica de Lisboa e presidente do Conselho de Reitores, artífice da fusão da Clássica com a Técnica, que levou à criação da Universidade de Lisboa, de que é reitor honorário, especialista de Educação de projeção internacional e candidato a Presidente da República nas últimas eleições, em que obteve cerca de um milhão de votos, embaixador de Portugal na UNESCO desde 2018 – diz ao Jornal de Letras que mais do que as comemorações oficiais «importa a criação de um movimento que vá muito além do dia 5 de maio, que simbolicamente é apenas a data, o lugar onde inscrevemos a nossa vontade de uma promoção internacional da Língua Portuguesa». E tem uma fórmula para a estratégia a seguir: EC ao cubo. Que é como quem diz: Ensino, Cultura, Conhecimento e Comunicação.
E se o reconhecimento do Dia da Língua Portuguesa é uma das marcas já visíveis da sua ação, lançou também duas ideias sobre as quais a UNESCO atualmente se concentra: uma reflexão sobre o futuro do ensino, outra sobre a exigência de uma ciência aberta e da partilha de dados e de conhecimento. Dos trabalhos em curso para a elaboração de relatórios e recomendações poderão sair as diretivas da organização nessas matérias, para as próximas décadas. Se os documentos forem aprovados na próxima Conferência Geral, no final de 2021, será, para Sampaio da Nóvoa, «uma grande alegria», confessa. «Portugal deixará uma marca», e a língua portuguesa dará um “contributo importante para pensar o futuro». António Sampaio da Nóvoa “O reconhecimento do português como língua global” outra sobre a exigência de uma ciência aberta e da partilha de dados e de conhecimento. Dos trabalhos em curso para a elaboração de relatórios e recomendações poderão sair as diretivas da organização nessas matérias, para as próximas décadas. Se os documentos forem aprovados na próxima Conferência Geral, no final de 2021, será, para Sampaio da Nóvoa, «uma grande alegria», confessa. «Portugal deixará uma marca», e a língua portuguesa dará um «contributo importante para pensar o futuro».
Jornal de Letras — Qual o significado de que se reveste o Dia Mundial da Língua Portuguesa?
António Sampaio da Nóvoa — Trata-se de uma decisão muito importante tomada pela UNESCO que deste modo reconhece o português como língua global e de comunicação internacional. Um gesto de grande valor simbólico e que abre muitas oportunidades para a sua projeção.
Como se traduzem na prática?
Desde logo, é uma oportunidade para o reforço de iniciativas conjuntas dos países da CPLP e estamos a trabalhar muito nesse sentido. Outra é o reforço da Língua Portuguesa (LP) no conjunto do sistema das Nações Unidas e do multilateralismo. Todos reconhecemos que Portugal está, hoje, numa condição excecional para desempenhar um papel de primeiro plano, de grande destaque, na cooperação internacional. Isso depende muito da LP, do seu espaço e afirmação.
Em que iniciativas concretas já estão a trabalhar?
Nas relacionadas com a projeção internacional, com o ensino e a formação de professores, em particular nos países africanos. Algumas que pensávamos divulgar já no DMLP, mas infelizmente, pelas atuais circunstâncias, foi adiado o seu anúncio. Mas posso avançar que o governo, a partir do Instituto Camões, do Ministério dos Negócios Estrangeiros e do Ministério da Cultura, irá anunciar logo que possível um relançamento de uma estratégia de promoção internacional da LP. Isso é muito importante e foi, de algum modo, uma necessidade que se abriu com a proclamação do Dia Mundial da Língua Portuguesa.
Em seu entender, o que é essencial nessa estratégia?
Se tivesse que a organizar, teria em conta quatro domínios absolutamente centrais, que poderia pôr numa fórmula: EC ao cubo. O “E” tem que ver com o ensino que é, para mim, a pedra basilar. Tudo o que se relacione com o ensino do português no estrangeiro e com a formação de professores é extraordinariamente importante.
E quais são os três “C”?
São aqueles em que a língua se baseia. O C da cultura e da criação, o que passa pelo apoio aos escritores, editores, tradutores, para uma maior circulação da LP através da dinâmica da criação, do livro. E o “C”, muito importante para mim, até pelo lugar de onde venho, de conhecimento, de ciência.
No sentido de afirmar a língua portuguesa como uma língua de ciência?
Com a crise que vivemos, torna-se nítido que é preciso haver uma ciência aberta e de grande circulação e o português tem de ser realmente também uma língua de ciência. Não podemos deixar esse papel apenas ao inglês.
E o que pode ser feito para o conseguir?
É preciso haver uma colaboração muitíssimo maior entre espaço científico e espaço universitário. Claro que existe a Associação das Universidades de Língua Portuguesa, que há programas importantes que têm sido feitos, que recentemente foi criado um centro Unesco, de categoria 2, para a formação científica nos países africanos de língua portuguesa, que temos a área do Camões do ensino superior, mas precisamos de passar a patamares de colaboração superiores, porque evidentemente o futuro vai passar pelo conhecimento e pela ciência, tal como pela cultura. As universidades têm aí um papel determinante. E utilizar a presença da íngua portuguesa um pouco em todo o mundo para tentar construir uma possibilidade de pensar o futuro é certamente muito importante. E agora, pensar como será o mundo pós-coronavírus e de que forma vamos fazer as transições que há muito dizíamos serem necessárias.
Que transições?
Ecológica, digital, escolar. A língua portuguesa, não apenas no nosso espaço, mas no mundo, pode dar um grande contributo nessa reflexão.
Pensa que o mundo vai mudar depois desta pandemia?
Essa não é a minha visão. Havia mudanças que já estavam em curso, esses temas já estavam em cima da mesa e esta crise só vai acelerá-los, torná-los mais urgentes e obrigar-nos a encontrar respostas mais imediatas.
Voltando à sua ‘fórmula’, o terceiro “C”, qual é?
Em termos genéricos, representa de uma forma alargada a comunicação, incluindo aí a presença da língua potuguesa no mundo digital. E uma língua que também abre oportunidades de negócios, passando pela economia ou pela diplomacia. Julgo que, de uma maneira ou de outra, esses três “C” têm que estar sempre presentes numa estratégia de promoção.
A língua portuguesa está, de resto, entre as cinco línguas mais utilizadas no espaço digital. Isso representa um especial desafio?
Sem dúvida. Deve-se sobretudo ao Brasil, que avançou muito no digital, mas essa presença da língua portuguesa deve ser reforçada, até para projetar uma nova fase da língua.
Nova?
Estive a reler um texto de Rui Knopfli, de 1989, em que falava da língua como um denominador comum de vários espaços, africanos, asiáticos, brasileiros, europeus, de diferentes culturas, evoluindo e alargando por caminhos próprios, uma “pátria coincidente”. De facto, incorporou falares diferentes, novas expressões e verbalizações até uma nova sintaxe. É uma língua que se tem renovado e que continua a renovar-se. Temos uma geração de jovens escritores e um conjunto de editoras, algumas muito pequenas, que estão a dar vida à língua. Porque não basta haver dias mundiais e uma língua ser consagrada pelas instâncias internacionais, é preciso que seja capaz de dizer coisas fortes às pessoas. Isso deve-se muito também à circulação que o digital permite. A Unesco acaba, de resto, por reconhecer esse momento de grande pujança e criatividade da LP e da nossa posição geoestratégica no mundo.
A nível das instituições, a língua portuguesa tem-se feito ouvir?
Tem havido aberturas. Vasco Graça Moura disse que nenhum de nós quer uma língua única, totalitária. Não quer dizer que o inglês não prevaleça como essa espécie de língua franca, nas instâncias internacionais, mas deve-se abrir espaço para uma diversidade linguística central nos dias de hoje, podendo estabelecer pontes úteis entre os diversos idiomas. O português é, aliás, um dos que está mais bem situado em todos os cantos do mundo. Mas claro que não tem o número de falantes do chinês. Quando foi proclamado o Dia Mundial da Língua Portuguesa, o ministro Manuel Heitor, que representou Portugal, fez a sua declaração em português, porque já é uma língua oficial da Conferência Geral da Unesco, embora ainda não seja no conjunto dos órgãos. Estamos a dar passos num caminho que é importante também dentro das organizações internacionais.
A celebração, a primeira, do Dia Mundial da Língua Portuguesa vai ser no espaço digital, por força dos atuais condicionalismos. O que se pretende?
Tínhamos previsto muitas iniciativas, por exemplo uma exposição de Cruzeiro Seixas, que este ano faz 100 anos, em Paris, cidade das suas referências, homenageando também de certa forma Mário de Sá-Carneiro, que lá viveu. Mas não foi possível, tal como outras atividades que estavam programadas. Vamos ter uma presença por via digital, com celebrações virtuais, mesas-redondas por videoconferência, mensagens.
Como tem sido a recetividade a este dia?
Impressionante. E há muitas iniciativas que estão a ser tomadas também por escolas, por diferentes pessoas que se interessam pela língua. É a inscrição dessas pessoas e do que têm para dizer que realmente faz o Dia Mundial da Língua Portuguesa e não só as comemorações oficiais, formais. O que importa é a criação de um movimento que vá muito além do dia 5 de maio, que simbolicamente é apenas a data, o lugar onde inscrevemos a nossa vontade de uma promoção internacional da LP uma língua extraordinária também na capacidade de pensar o futuro.
Em que sentido?
Vergílio Ferreira disse que não se pode pensar fora das possibilidades da língua em que se pensa. Pela sua história, por incorporar outras culturas, tradições, a LP tem possibilidades únicas. Se o Dia Mundial da Língua Portuguesa for um marco e uma marca da sua nova realidade, já deu um contributo extraordinário para o nosso futuro.
A proclamação do Dia Mundial da Língua Portuguesa foi um momento-chave do seu trabalho como embaixador de Portugal na Unesco. Como o sentiu?
Naturalmente, com uma grande emoção, até porque estava a sala inteira a olhar para nós. Também lá estavam os embaixadores de Cabo Verde, Angola ou Brasil e representávamos um conjunto de pessoas e de culturas que se sentem reconhecidas nesta língua. E recebemos dezenas de mensagens de outros embaixadores, pelo que foi realmente um momento muito tocante.
E em geral, como está a ser a sua experiência na Unesco?
O funcionamento diário, os procedimentos, o peso das decisões, tudo isso nem sempre é fácil. E é um combate diário por outra agilidade, porque os problemas, as desigualdades do mundo não esperam por nós. Mas tem sido uma experiência fabulosa e estou muito grato a todos pelo apoio e simpatia que têm tido em relação ao meu trabalho. Tenho procurado agir, e julgo que foi nesse sentido que o governo português fez a minha indicação para representante de Portugal junto da Unesco, concentrando-me nas situações mais substantivas, em particular na educação e na ciência, além de outras iniciativas relativas ao património, à cultura. E acho que aí Portugal tem dado um impulso decisivo, como tem sido reconhecido pela diretora-geral da Unesco.
De que maneira?
As duas grandes iniciativas que a Unesco lançou, nestas áreas, nos últimos tempos, foram propostas por Portugal.
Apostas pessoais?
Lancei essas ideias praticamente quando cheguei à Unesco, há um ano e meio. Refiro-me à comissão internacional para pensar o futuro da educação, que está a trabalhar muito bem e já deu muitas orientações nesta altura da crise do coronavírus. E, por outro lado, a iniciativa Open Science, uma ciência aberta e não fechada em revistas a que ninguém tem acesso, mais democrática e pública, para o bem da humanidade. Muitos até nos perguntam por graça se já estávamos a pensar antes no que está a acontecer. Essas iniciativas, em que estamos muito empenhados, ganham, na verdade, uma pertinência, um sentido novo nesta altura e podem ser fundamentais para pensar o que será a sociedade no pós-crise. Porque se inserem na dinâmica de transformação que se vai acentuar depois desta bolha de confinamento em que estamos a viver e que não será certamente o nosso novo futuro. E é possível que tentemos já agora uma iniciativa da Unesco.
Com que objetivo?
Reforçar o papel e o apoio aos professores, sobretudo em África e nos países com mais dificuldades, uma vez que se estão a sentir alguns problemas nesta crise, por parte dos docentes, na resposta à atual situação. Temos que ajudar esses países e acho que se alguma coisa a Unesco pode fazer pelo mundo, nos próximos anos, é centrar-se na situação de África.
Porquê?
África é um problema imenso e não só para os africanos, mas para o mundo inteiro E a língua portuguesa está também aí bem situada, através de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde. E dá-nos muito prazer sentirmos que pudemos dar o nosso contributo à Unesco, que tem uma matriz muito centrada sobre o bem comum, sobre os valores humanistas, e nesse sentido é uma organização imprescindível.
Entrevista concedida ao Jornal de Letras. Disponível na edição de 22 de abril a 5 de maio.