O Dia Mundial da Língua Portuguesa [assinalou-se na quarta-feira, 5 de maio [de 2021]. Para celebrar o dia, o Expresso ouviu seis cidadãos estrangeiros de diferentes nacionalidades, mais ou menos conhecidos publicamente, falarem sobre a sua relação com o português.
Agne, Alvaro, Ianina, Moncho, Richard e Thuy Tiên contam alguns episódios que mais marcaram o seu percurso em Portugal e também na língua.
Agne, Alvaro, Ianina, Moncho, Richard e Thuy Tiên são seis estrangeiros que vivem em Portugal há décadas. Para alguns, a língua portuguesa foi inicialmente uma dificuldade e o principal obstáculo na adaptação ao país. Para outros, que já tinham bases de latim ou sabiam outras línguas românicas, aprender a língua não custou assim tanto.
Thuy Tiên de Oliveira (vietnamita que é tea designer), Moncho Lopéz (espanhol, treinador do Basquetebol do FC Porto), Agne Sukure (letã, proprietária de uma agência de casting) e Ianina Khmelik (música russa) tiveram aulas de português para aprenderem mais rápido. Já Alvaro Negrello (maquetista suíço) e Richard Zimler (escritor norte-americano) decidiram aventurar-se sozinhos.
A língua portuguesa já se entranhou em todos, nuns mais do que noutros. Muitos já pensam em português, têm autores lusófonos preferidos e até já sonham na própria língua.
Os seis são de diferentes partes do mundo têm idades e profissões diferentes, mas todos vieram parar a Portugal. «Nunca se pode dizer nunca», mas, para já, nenhum deles tenciona voltar para o seu país de origem.
Neste Dia Mundial da Língua Portuguesa, o Expresso ouviu seis cidadãos estrangeiros falarem sobre a sua relação com o português.
Alvaro Negrello, «o senhor Nestlé»
«Tudo começou há 30 anos». Alvaro Negrello nasceu em Locarno, na Suíça italiana, é maquetista e veio para Portugal com 27 anos, depois de ter participado numa palestra do arquiteto Álvaro Siza Vieira, ainda em Genebra. Quando era mais novo, tentava identificar outras pessoas com o mesmo nome e «nunca tinha conhecido ninguém chamado Álvaro» até ter conhecido Siza Vieira, o que achou curioso.
Além desta coincidência, não quis repetir os mesmos passos dos seus colegas arquitetos, que na altura foram para Paris, Londres, Barcelona ou Berlim. Como era aventureiro e quis ser diferente, apostou em Portugal. Inicialmente queria ir para Lisboa, mas depois disseram-lhe que «arquitetura era no Porto», então aceitou a Invicta como a sua cidade.
A língua portuguesa nunca foi uma grande barreira. «Falando italiano e francês, o português como língua românica naturalmente entrou no ouvido sem grande esforço», conta. Não demorou muito tempo a aprender português, ainda que sozinho e sem aulas. Quando ouve algum estrangeiro dizer que está com dificuldades em aprender a língua aconselha «a ouvir e a ver telenovelas». «É uma linguagem simples e para quem está no início da aprendizagem de uma língua é a conversa fácil que interessa».
Alvaro usa diariamente as três línguas, então não sabe dizer se pensa em português. As contas e os cálculos mentais continua a fazer na sua língua materna. «Não há dúvida nenhuma: continuo a fazer as minhas contas em italiano. Já o raciocínio não sei», admite.
As primeiras imagens de Portugal ainda estão vivas na sua memória: «um país que me lembrava as histórias de Itália logo depois da guerra». Recorda que na rotunda da Boavista, no Porto, «para virar à esquerda podia ainda pôr-se o braço para fora do carro, uma coisa fantástica». «Sempre circulei na Suíça com rigor, semáforos, e aqui ainda se podia pôr o braço de fora para ter licença para passar», relembra.
Agora Alvaro Negrello tem 56 anos. Ainda hoje é conhecido na sua rua como o “senhor Nestlé” (marca sediada na Suíça). «Acho isso muito bonito. Há bem mais portugueses na Suíça do que suíços em Portugal, então continua a haver um certo fascínio de ter alguém do centro da Europa a viver no sul da Europa», conta. Voltar para a Suíça parece-lhe uma «missão impossível», mas «nunca se pode dizer nunca».
Thuy Tiên de Oliveira, uma das primeiras vietnamitas em Portugal
Thuy Tiên de Oliveira aprendeu a língua portuguesa através de Fernando Pessoa, Amália Rodrigues e Sophia de Mello Breyner. «A minha professora privada deu-me a aprender o português desta forma, com uma imersão na língua portuguesa.»
Nasceu em Saigão, no Vietname, e veio para Portugal por «motivos profissionais e familiares». «Estou cá há 30 anos, sou quase a primeira vietnamita em Portugal», diz com orgulho. Thuy Tiên encontra muitas semelhanças entre as duas culturas, o que facilitou a adaptação ao país. «Os vietnamitas e os portugueses são muito parecidos, são pessoas com muita hospitalidade e desenrascados.»
A língua também não foi uma dificuldade porque já tinha uma base de latim. Além disso, sabia francês, que é a sua segunda língua. Ao falar português sentiu, no início, que alguns acentos eram um pouco difíceis, mas notou ao mesmo tempo que «muitos sons e ditongos eram parecidos com o vietnamita».
Para Thuy Tiên de Oliveira, a aprendizagem do português é um processo constante. «Vou continuar sempre a ler, a procurar e a aprender.» Entretanto, descobriu vários autores de que gosta, desde Fernando Pessoa, a José Gil e José Régio – uma «influência interna do universo intelectual da família do meu marido». Thuy Tiên é casada com o pintor Manuel Casimiro e é, por isso, nora do cineasta Manoel de Oliveira, por quem tem «muita honra».
Atualmente, Thuy Tiên é tea designer, tem uma loja de chás com acessórios e artefactos do seu país. «Quando comecei, há mais de 10 anos, não havia nada do Vietname aqui em Portugal. Foi muito bem aceite porque o Vietname é muito querido para os portugueses, muito mesmo», afirma.
«O Vietname mudou bastante» e por isso não tenciona regressar. «Gosto de voltar todos os anos, mas para viver se calhar não. Vou ficar aqui em Portugal. Não é a minha segunda língua, mas é a minha segunda pátria.»
Richard Zimler, o nova-iorquino que já sonha em português
«Por que estou em Portugal? A história é bastante complexa, mas vou contar a versão reduzida». Richard Zimler é um escritor, jornalista e professor nova-iorquino com 65 anos. Alexandre Quintanilha, deputado no parlamento, é a sua ligação a Portugal. Conheceram-se em São Francisco, nos Estados Unidos, e desde então estão juntos, há 42 anos.
Na década de 80 surgiu a sida, que matava gente muito jovem e afetou bastante a zona de São Francisco. Depois de o seu irmão ter falecido vítima da doença, Richard Zimler ficou “traumatizado”. «Não consegui retomar a minha vida e o Alexandre disse-me: "temos de mudar-nos para outro sítio onde as pessoas estejam a falar de outras coisas"». Assim chegou a Portugal, em 1990.
Começou a dar aulas na Escola Superior de Jornalismo e a língua portuguesa era «muito complexa para um americano», pelo que inicialmente falava em inglês, só que «ninguém percebia nada». «Os primeiros anos foram mesmo difíceis para mim. Dar aulas numa língua estrangeira foi stressante.» No entanto, «para melhor ou para pior» aprendeu português sozinho. «Via muitos programas em inglês com legendas em português. Daí eu podia fazer as correspondências e aprender a língua coloquial», lembra.
Richard conta uma história engraçada que tem na ponta da língua: «Um dia estava em minha casa um empreiteiro e estávamos a conversar sobre tudo e sobre nada. Ele falava-me de um senhor muito rico na Foz do Porto que tinha um "bião", levava o "bião" para todo o lado e o "bião" era muito lindo, mas eu não entendia nada do que era este "bião". Finalmente, passados dez minutos, comecei a perceber que era um avião. O homem tinha um jato privado que levava para várias cidades, só que o empreiteiro dizia "bião".»
Agora está «completamente confortável» e considera que já domina bem a língua estrangeira, que se entranhou em Richard Zimler. «Já sonhei em português, passo a minha vida quotidiana em português», resume. Voltar a morar nos Estados Unidos não é uma opção para o nova-iorquino. «Vou viver sempre em Portugal», afirma.
Richard Zimler escreve os livros para crianças em português e os romances para adultos em inglês. O escritor tem vários autores portugueses preferidos, um deles é Miguel Torga. «Tem uma maneira concisa e frontal de escrever, sou muito menos adepto da escrita hermética portuguesa. Aprendi muito sobre Portugal com ele, sobre as zonas rurais e as relações entre as pessoas, por exemplo. É muito poderosa a escrita dele.»
Ianina Khmelik, a russa que escreve canções em português
Ianina Khmelik é natural da Rússia e veio para Portugal graças a uma «junção de circunstâncias felizes». Com apenas 16 anos foi estudar para a Escola Profissional de Música de Espinho. «Na altura, muita gente saiu do meu país, principalmente os músicos. Houve uma vaga de emigração muito grande para países como Portugal, Espanha e Alemanha», refere.
O primeiro ano cá foi «extremamente difícil». Ianina estudou e viveu em Moscovo durante a sua infância e até à adolescência. Quando veio para Portugal sentiu uma grande diferença: «Eu vinha de uma cidade com cerca de 15 milhões de habitantes. Começar a viver em Espinho, uma cidade tão pequena, foi uma diferença drástica. Ao final de duas semanas quase que se conhece toda a gente só pelas caras.»
Quando chegou não falava português. Lembra-se de uma vez em que ia no comboio para tocar violino e adormeceu: «Pensava que estava a ouvir russo, mas que não percebia nada. É curioso, lembro-me bem disso.» O aperfeiçoamento da língua demorou «uns cinco anos», como conta. Ianina Khmelik preocupava-me muito com a pronúncia. Ouvia música e rádio portuguesa para tentar apanhar bem a sonoridade, porque não queria só saber falar bem, «também queria que soasse bem».
Além de português e russo, fala inglês, espanhol e francês. Usa as diferentes línguas no seu projeto – IAN – que levou até ao Festival da Canção este ano. «Às vezes há músicas que pedem determinadas sonoridades», explica. «Acho muito interessante a cor de cada língua. Por exemplo, aquela música tem de levar russo, ou tem de ser cantada em português ou em inglês.»
Para Ianina, o português é incrivelmente poético, mas curiosamente difícil. «Acho que é bastante complicado escrever canções em português sem serem melancólicas. Nisso, por incrível que pareça, o brasileiro é muito mais suave e mais fácil de encaixar numa canção.» Já fez letras em português e acha que estão bem conseguidas, mas continua a aprender «a arte da conjugação das palavras».
A língua também já se entranhou de tal forma que tanto sonha em português como em russo. Ianina Khmelik não tenciona voltar para Moscovo enquanto continuar em vigor o regime político de Putin. «Gosto muito do meu país, gosto muito da cidade onde nasci. Mas, infelizmente, está fora de questão voltar para a Rússia tal como ela é agora», conclui.
Moncho López,o galego que ensina palavras portuguesas
Moncho López é treinador de basquetebol do FC Porto há 12 anos, apenas com uma pequena interrupção quando o clube decidiu suspender a equipa sénior, em 2012. Mora em Portugal desde setembro de 2009, depois de ter recebido um convite da Federação Portuguesa de Basquetebol para liderar a seleção nacional sénior masculina. «Depois tive um convite do Porto e cá estou.»
Moncho López nasceu em Galiza, Espanha, e já tinha contacto com Portugal antes de vir morar para cá. Ia muitas vezes aos pontos mais próximos da fronteira, como Vila Nova de Cerveira, Monção e Melgaço. «Felizmente, as pessoas percebiam-me, mas eu sentia que tinha dificuldade em perceber bem quando um português falava.» Então, começou a ouvir muita rádio e música portuguesa, para se familiarizar mais com a língua. «Comecei a sentir uma motivação em perceber melhor, então decidi ir à Escola Oficial de Idiomas em Vigo e inscrevi-me em português.»
Para Moncho, a compreensão escrita do português sempre foi mais “elevada” do que a oralidade. «Acho que há muitos anos que falo igual, a minha pronúncia é super espanhola», reconhece. Ainda assim, o processo de aprendizagem foi simples: «foi muito rápida a velocidade com que comecei a saber português.»
No início, notava muita resistência por parte dos portugueses em falarem na sua língua materna. «Nos primeiros anos, eu ia tomar um café ou ia uma loja e as pessoas resistiam em falar-me em português, falavam em espanhol mesmo tendo muitas dificuldades, e "estragavam" os dois idiomas. Eu dizia "por favor, fale em português", mas não havia maneira.» Hoje em dia, isso já não acontece – «imagino que devo ter melhorado o meu português».
Agora as histórias são outras. «Tenho um amigo meu [português] que me diz: "às vezes ensinas-me palavras". Já outros dizem-me que determinada palavra não existe. Quando eu insisto, perguntam "então, vens-me tu ensinar português?", ao que respondo "não vou ensinar português, mas eu acho que essa palavra existe"».
O galego de Moncho López já está dominado por expressões que só se dizem na língua portuguesa. «Por exemplo, entre nós dizemos "dar jeito", que não existe em espanhol. O português invadiu muito a minha mente. Tenho acordado à noite depois de um pesadelo e estou a pensar em português, acordo e a minha cabeça está em português. É um processo muito invasivo, mas não me incomoda», assume.
Agne Sukure, a letã que já se sente no seu país
As primeiras palavras que Agne Sukure aprendeu quando chegou a Portugal foram calma e amanhã. Houve uma confusão quando chegou a Lisboa: não tinha ninguém à sua espera depois de ter aterrado. «Foi uma falha de comunicação. Como não percebia português e falava muito mal inglês, fiquei presa no aeroporto naquela noite», relembra.
Agne é natural de Riga. Ainda estava a estudar na universidade na Letónia quando veio a Portugal pela primeira vez e se “apaixonou”. Só em 2004 é que começou a estudar canto lírico no Conservatório de Música do Porto. Mais tarde, trabalhou na RTP como figurante e depois como atriz. Após alguns anos decidiu abrir a sua própria agência de casting.
Está a morar em Portugal há 15 anos. No princípio tinha muita vergonha em falar português, a língua foi mesmo o maior obstáculo. Para ganhar mais destreza tirou dois cursos, porém há erros que são «difíceis de corrigir porque são antigos». Para Agne foram precisos «quatro a seis anos para perceber a cultura portuguesa, para ter aquele respeito e perceber mesmo a maneira como os portugueses fazem as coisas, com aquela calma», explica.
Agne recorda um episódio, que conta entre risos: «Na Letónia dizemos "viva os letões", então sempre houve aquela brincadeira de "viva os leitões". Sei que quando comecei a aprender português na Faculdade de Letras faziam muito essa piada com os letões-leitões.»
De uma forma geral, os portugueses sempre foram calmos e simpáticos com a letã. «São um povo com muita paciência mesmo, acho que isso me ajudou muito. Não tinham coragem de corrigir-me, houve pouca gente que me disse "olha, se calhar devias dizer isto de outra forma".»
Agne Sukure já tem nacionalidade portuguesa e não tenciona voltar para a Letónia. «Acho que nunca posso dizer nunca, mas sinto-me muito já no meu país aqui em Portugal, sinto-me muito bem», assume com alegria.