«Escreve-se "bem" um trabalho escolar, uma obra literária escreve-se. Ponto final.»
Dizia-se de um falecido cronista, não destituído de graça e de talento, que «escrevia bem». Vasco Pulido Valente, é de quem falo, deixou por certo textos memoráveis, cheios de humor e inteligência. Mas a sua escrita é assinalada com a marca do bom escrever apenas e tão-só pela sua constante absorção do estilo e dos tiques literários de Eça de Queirós, modo de ver e de escrever que se tornou historicamente paradigma e matriz de grande parte dos discursos dos portugueses sobre Portugal.
Um recente seguidor de Vasco Pulido Valente na atitude e na maneira de se posicionar, Miguel Tamen, nota certeiramente que «a prosa de Eça de Queirós tem a reputação de, em Portugal, ser sinónimo de prosa. Escrever bem é para a maioria escrever como ele. Falar bem é geralmente medido pela maneira como ele escrevia» ("Eça de Queirós", em O Cânone, 2020). Que venha de um espírito tão afim do saudoso Vasco Pulido Valente esta observação mostra bem quanto conhecemos melhor quando nos conhecemos a nós próprios. O "indígena" de Pulido Valente é o mesmo de que Miguel Tamen fala («Acontece que poucos portugueses leram literatura portuguesa e a maior parte não se lembra de nada», in O Cânone, p. 421) e todos remetem a um Eça intemporalmente inultrapassável no popular género literário de lamentação da miséria pátria.
Vemos, assim, como a sombra de um enorme «prosador forte» (para roubar a imagem de [Harold] Bloom do "poeta forte") consegue amedrontar a posteridade, a ponto de reduzir a imagem de escrever bem a escrever tal qual como ele. E não é que os nossos autores posteriores a Eça não tenham sabido enfrentar o desafio da sua obra: o romance português no século XX encontrou os seus pontos cimeiros sem a menor necessidade desse «escrever bem» padronizado na prosa queirosiana, tornando definitivamente anacrónicas as dúvidas de um Gaspar Simões sobre a viabilidade do romance em Portugal. É noutras escritas, no jornalismo, na política, no ensaísmo, que a imitação queirosiana surge como indicador autorreferencial de qualidade. Esse modo de escrever vai conferir à prosa o valor simbólico do «escrever bem» e assim transforma um conceito vazio numa marca de valor simbólico.
Louis Aragon intitulou a sua autobiografia literária Nunca Aprendi a Escrever (Je n'ai jamais appris à écrire ou les incipit, 1969). Contornando a falsa modéstia que se espelha no título de Aragon, fixemo-nos na verdade profunda desta ideia: o escritor de verdade é o que não sabe escrever.
Se a escrita não for uma procura precária de si própria e do mundo torna-se mero artifício e mais ou menos laboriosa fabricação. Terá talvez mercado, mas não terá verdadeiros leitores. Terá compradores, mas ninguém dirá desses escritos que a sua leitura lhe abriu qualquer janela para a infinita novidade do mundo. Por isso Marguerite Duras dizia que era só a escrever que compreendia o que queria dizer a sua escrita.
Nunca nos ocorre dizer que Eça ou Camilo «escreviam bem». Camilo, esse, torturado da escrita mas não da forma, poderá mesmo partilhar com Dostoiévski a magnificente glória dos grandes autores que «escreviam mal». Escreve-se "bem" um trabalho escolar, uma obra literária escreve-se. Ponto final.
Há hoje oficinas de escrita criativa destinadas à industrialização e consequente padronização e formatação do trabalho literário. Os «engenheiros de almas» do realismo socialista migraram no nosso reino capitalista para a indústria literária, fomentando as boas práticas e torcendo o pescoço, não já à eloquência, mas à própria ameaça de literatura ou de verdadeira criação. Em nada adiantam ao convencer um jovem que antes de escrever já sabe escrever, ou até que (santa ingenuidade!) poderá vir a... escrever bem!
Eça de Queirós não escrevia bem, porque é um grande, um enorme escritor!
Artigo publicado no Diário de Notícias em 21 de novembro de 2020.