A propósito da introdução em manuais escolares, da disciplina de Português do 10.º ano do ensino secundário em Portugal, de temas e figurantes do concurso televisivo Big Brother, bem assim como de telenovelas da Globo – quando já tinha sido afastado do programa dessa mesma disciplina o estudo de "Os Lusíadas", desaparecendo da lista obrigatória curricular autores como Gil Vicente, Eça de Queirós ou Vergílio Ferreira –, o dire(c)tor adjunto do "Público", Nuno Pacheco, subscreveu este editorial, no domingo, 12 de Outubro:
O Antiensino
«A pretexto da televisão e da internet (como é bom soletrar modernidade, na mais completa ignorância do que isso significa!), a escola está a baixar as suas obrigações e exigências nos limites do suportável. Por este andar, os alunos ainda vão responder, se lhes perguntarem, que "A Peregrinação" é uma ida a Fátima, que Colombo e Vasco da Gama são centros comerciais e que Camões é um largo. É uma geração assim, ágil em bites e nula em conhecimento, que queremos ter neste século XXI?» A interrogação foi feita no PÚBLICO, em Agosto de 2001, neste mesmo espaço de Editorial. Se quisermos responder-lhe, dois anos passados, bastará uma simples e inconformada letra: é.
Nessa altura discutiam-se as muito discutíveis reformas curriculares que "limparam" do 10.º ano muitas referências literárias trocando-as por «textos informativos», «textos dos "media"», «textos de carácter autobiográfico», «textos expressivos e criativos do séc. XX.» Quem na altura pasmou com a troca foi apelidado de antiquado: quem tem televisão ou Internet em casa dificilmente será seduzido a amar os livros, para mais os fora de moda. Agora já podemos confirmar, com provas indesmentíveis e aterradoras, onde queriam chegar tais iluminados. Basta atentar no conteúdo, divulgado ontem no PÚBLICO, de alguns manuais de Português B para o 10.º ano. Lá estão, como base de "aprendizagem", o Big Brother, as programações da TV Guia ou as telenovelas, envolvendo os alunos num passatempo onde são convidados a dizer «o que levou Tomé a expulsar Maria de casa» ou quem é que «Rodrigo agride violentamente, deixando-o cego.» Imagina-se o esforço intelectual das pobres criaturas: explicar quem é Tomé, porque embirrou com a pobre da Maria, que por sua vez nem conhecia o tal Rodrigo que cegou um zé-ninguém infeliz...
Sabendo, como se sabe, que tão audaciosa e inovadora matéria vem substituir Gil Vicente ou Vergílio Ferreira (dispensáveis aos olhos de "estrelas" como Tomé ou Rodrigo), é caso, já não para pasmar, mas para perguntar apenas: que género de débeis mentais nos propomos "moldar" nas escolas? Que tipo de portugueses vemos nós nos nossos filhos? Aqueles que, até há bem pouco tempo, liam por obrigação Gil Vicente, Eça de Queiroz ou Camões, acabando, muitas vezes, por ceder ao encanto do seu génio criativo? Ou um bando de imbecis que só consegue filtrar o mundo através da medíocre imagem que dele fazem, continuamente, os "big brothers" da nossa pálida realidade? Porque teimamos nós em ensinar aos jovens o que eles já conhecem em demasia em lugar de lhes abrir mundos que amanhã farão deles algo mais do que simples vegetais com B.I. e cartão de crédito? Porque nos habituámos, em nome de uma educação sempre tão maltratada e ainda pior ministrada, a ceder no essencial para salvar o lado mais vil e efémero do conhecimento? Devíamos ter encontrado resposta a tempo. Agora, como se vê, talvez seja tarde de mais.