«(...) parece muito claro que para entrarmos na leitura profunda do texto – principalmente o poético – é necessário que recorramos a estudos que destrinchem a estrutura, a fim de que consigamos enxergar os sentidos que residem no fonema, no morfema, na palavra, na frase e no parágrafo(...)»
A pergunta do título pode parecer estranha, por soar confusa ou paradoxal, mas ela tem uma razão de ser. Quando estávamos na escola, e perguntávamos como interpretar um texto, era comum ouvirmos de pais e professores: «Interpretar se aprende lendo os textos.»
Confesso que sempre achei a resposta meio redundante e, durante muito tempo, julguei essa aplicação meio inócua. Imagine a mesma frase aplicada a outras disciplinas.
– Como aprendo hebraico?
– Hebraico se aprende falando hebraico!
Parece estranho, não?
Demorei anos para olhar diferentemente essa frase e cheguei à conclusão que ela tem uma armadilha. Vamos pensar juntos...
Em «Interpretar se aprende lendo os textos», sempre entendi que os textos que deveriam ser lidos eram os textos a serem interpretados, nunca me passou pela cabeça que algo podia estar por trás. E, em realidade, estava.
A mim, me parece muito claro que para entrarmos na leitura profunda do texto – principalmente o poético – é necessário que recorramos a estudos que destrinchem a estrutura, a fim de que consigamos enxergar os sentidos que residem no fonema, no morfema, na palavra, na frase e no parágrafo. Um dos primeiros professores que me ensinou isso foi o livro do mestre Antonio Candido [1918-2017], Na Sala de Aula. Nesta obra, o crítico, analisando algo em torno de nove poemas da literatura brasileira, mostra como as escolhas linguísticas não são gratuitas na intencionalidade textual.
Além disso, é preciso ter em mente que boa parte dos textos literários cobram alguns pré-requisitos para sua total intelecção. Referências bíblicas, helênicas e romanas são os principais pontos de partida. Além disso, desde a modernidade, a presença do cotidiano e da cultura de massa passou a dialogar com elementos tidos como clássicos, produzindo um caleidoscópio cultural que muitas vezes tensiona a leitura e a atenção.
Essa relação entre não gratuidade na escolha linguística e tensão de leitura produzida pelo texto me faz lembrar João Guimarães Rosa [1908-1967]. O autor, cuja obra exige estudo para a apreensão total dos seus sentidos, foi um dos maiores criadores e narradores da língua portuguesa. Um exemplo do seu processo. No conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, Rosa narra a vida de Augusto Esteves, homem rico, rústico, duro, egoísta e controlador que, após uma derrocada física e moral, redime-se.
Como dissemos, as escolhas não são gratuitas. Para mostrar que o personagem teve e depois perde o poder político, social, moral e financeiro, Rosa o nomeia como Augusto Esteves. Em termos gramaticais, «Esteves» pode ser visto como o pretérito de verbo estar e “augusto” é o adjetivo que indica «alguém venerável». Ou seja, Augusto Esteves é aquele que «esteve augusto», esteve venerável. A decodificação imediata desse sentido não parece ser clara, cabendo estudos como o de Ana Maria Machado, em O Recado dos Nomes, para trazer luz aos nomes e as histórias dos personagens de Guimarães Rosa.
Essa é a armadilha na interpretação dos textos. Realmente é preciso ler os textos. E quais são eles? As críticas literárias, os suplementos e cadernos de análise da literatura. É claro que não precisamos deles para uma leitura de fruição, mas, se o nosso objetivo for o amadurecimento de nosso olhar e de nossa capacidade analítica para atingirmos autonomia, é fundamental que conheçamos esses críticos formadores – ainda que, no futuro, nós os ressignifiquemos e venhamos a construir um olhar único, autônomo e próprio sobre a literatura.
Artigo publicado em 5 de fevereiro de 2021 no mural Língua e Tradição, no Facebook.