Se o jornal em causa se dirige apenas a leitores de Portugal ou dos países africanos de língua portuguesa e se a intenção foi empregar o pretérito perfeito do indicativo*, a forma mais correta é efetivamente precisámos (as vírgulas a destacar «como agora» não são obrigatórias)1.
Se o jornal se dirige a todos os países de língua portuguesa, é legítimo, de acordo com a Base IX (4) do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, empregar a forma não acentuada da 1.ª pessoa do plural do pretérito perfeito de precisar: precisamos.
No padrão de pronúncia de Portugal, há de facto um contraste fonético entre a 1.ª pessoa do plural do presente do indicativo e a do pretérito perfeito do indicativo de verbos da primeira conjugação, que tem figuração gráfica: precisamos vs. precisámos.
Contudo, importa assinalar que o contraste fonético (e até fonológico) não se generaliza ao país, conforme se aponta numa anterior resposta. Além disso, embora o atual acordo ortográfico permita que as duas formas verbais tenham a mesma terminação (-amos), independentemente da pronúncia que se lhe dê, a verdade é que já a anterior norma ortográfica, a de 1945 (Base XVII), considerava que o acento agudo na forma de pretérito perfeito do indicativo era diferencial, e não fonético. Com efeito, na Base XVII do Acordo Ortográfico de 1945, lê-se:
«Assinala-se com o acento agudo, nos verbos regulares da primeira conjugação, a terminação da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo: "amámos", "louvámos", etc., e não "amamos", "louvamos", etc. Serve aqui o acento agudo, não para indicar o timbre da vogal tónica, visto a pronúncia desta carecer de uniformidade (nem sempre aberta em Portugal, nem sempre fechada no Brasil), mas apenas para distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo ("amamos", "louvamos", etc.), em benefício da clareza do discurso, as formas pretéritas com aquela terminação.»
Em suma, seria de esperar que um jornal publicado em Portugal escrevesse «nunca precisámos», muito embora a ortografia vigente a isso não obrigue. Outra coisa é o juízo sobre a pronúncia das duas formas da 1.ª pessoa do plural: no padrão de Portugal, distinguem-se, mas noutras regiões de Portugal são idênticas (ora o a é sempre fechado, ora o a é sempre aberto). Estas pronúncias regionais não são recentes nem estão incorretas (cf. Textos relacionados).
1 Não é que seja impossível a associação do advérbio nunca e do presente do indicativo precisamos, mas o contexto que a legitima tem a interpretação de uma situação habitual na perspetiva do momento da enunciação como, por exemplo, «geralmente, nunca precisamos de si». Mas não parece este o caso da frase em questão, que pretende transmitir ao destinatário que nunca antes do momento da enunciação (presente) se verificou, no mesmo grau, a necessidade da ajuda dele; daí que se justifique o pretérito perfeito do indicativo, cuja 1.º pessoa do plural, na perspetiva do português europeu (com o africano), se escreve precisámos. A resposta não exclui, portanto, a possibilidade de ocorrência do presente do indicativo (ainda que os juízos de gramaticalidade divirjam), mas incide sobre a opção pelo uso do pretérito perfeito do indicativo na frase.
* N. E. (23/04/2020) – O consultor alterou a frase original, na sequência de observações enviadas por alguns leitores, que consideram o presente do indicativo correto no contexto, caso em que não há qualquer comentário a fazer à forma precisamos, que é a correta para marcar a pessoa, o número, o tempo e o modo em apreço. Observe-se, porém, que a ocorrência do pretérito perfeito não contradiz a intenção de apelo feito no presente. Com efeito, considerando que a frase encerra uma construção comparativa e aceitando a ocorrência do pretérito perfeito, é possível parafraseá-la como «nunca precisámos tanto de si como (precisamos) agora», em que a forma verbal no presente do indicativo (precisamos) é omitida por efeito de uma elipse, conforme é típico da construção comparativa oracional. O consultor também concordou em alterar a nota 1.
N. E. (25/04/2020) – Sobre a possibilidade de ocorrência do presente do indicativo na frase em causa, a consultora permanente do Ciberdúvidas, Carla Marques propõe a seguinte interpretação numa perspetiva semântico-sintática:
A frase "Nunca como agora precisamos tanto de si." envolve uma construção comparativa, cujo domínio de quantificação é expresso pelo verbo precisar, exatamente como acontece numa frase como:
(1) «Eu preciso tanto de ti como tu precisas de mim.»
Na frase (1), o enunciador afirma que a quantidade de "necessidade" do eu (1.º termo de comparação) é igual à quantidade de "necessidade" do tu (2.º termo de comparação). Trata-se, portanto, de uma comparação de igualdade.
Antes de regressar à frase em apreço, é importante também recordar que o advérbio nunca pode negar um intervalo de tempo sem delimitação temporal expressa, como em (2):
(2) «Nunca vejo televisão.»
Conjugado com a flexão verbal, pode referir um intervalo temporal passado ou futuro:
(3) «Nunca vi televisão.»
(4) «Nunca verei televisão.»
Na frase em apreço, a referência temporal associada ao advérbio nunca tem, todavia, de ser delimitada em função da sua relação com o advérbio agora. Com efeito, a presença de agora obriga à introdução de um tempo de referência que estabeleça uma fronteira entre as duas referências temporais: nunca refere, assim, um tempo passado por contraste com o valor de agora, que referencia um intervalo temporal presente (no caso específico, coincidente com o intervalo de tempo durante o qual tem lugar a atual crise sanitária). Assim, na frase que consideramos, o domínio de quantificação expresso pelo verbo precisar é associado a dois intervalos temporais, sendo a comparação entre o grau de "necessidade" do passado o o grau de "necessidade" do presente. Por esta razão, fica claro que a frase envolve uma elipse da forma verbal precisar, associada ao segundo termo de comparação. A sua forma completa seria:
(5) «Nunca precisámos tanto de si como agora precisamos.»
Por esta razão, o tempo da forma verbal do primeiro termo de comparação terá de ser o pretérito perfeito do indicativo, enquanto o do segundo termo de comparação será o presente do indicativo. Acresce ainda que, em termos semânticos, estamos perante uma comparativa de superioridade, pois o grau de "necessidade" do presente é superior ao grau de "necessidade do passado.