Só se dirá que é correcta a distinção entre a fechado e a aberto nas formas de primeira pessoa do pretérito perfeito do indicativo, quando se considera que o padrão do português europeu se identifica com o dialecto das chamadas classes cultas de Lisboa. O facto de a diferença ser funcional, porque permite contrastar valores temporais distintos, favorece a opinião segundo a qual a indistinção é resultado de confusão e, como tal, constitui erro linguístico.
Mas se o critério em causa se pautar pela maior antiguidade da pronúncia, então dificilmente se pode dizer que a distinção é mais correcta que a não distinção, até porque existe um caso sem contraste de abertura de vogal; refiro-me à primeira pessoa do plural do presente e do pretérito perfeito do indicativo de verbos da 2.ª conjugação: «normalmente comemos arroz ao almoço» (presente do indicativo); «ontem comemos arroz ao almoço» (pretérito perfeito do indicativo).
Ivo Castro, na sua Introdução à História do Português (Lisboa, Edições Colibri, 1982, pág. 193), refere-se assim ao aparecimento do contaste entre a aberto e a fechado em sílaba tónica:
«[No sistema do vocalismo tónico do português quinhentista,] a vogal central [ɐ] ainda não adquirira pertinência distintiva, limitando-se a funcionar como variante contextual de /a/ em posição não acentuada, antes da consoante nasal. Paul Teyssier (1982: 42), contra a opinião de Serafim da Silva Neto (Neto 1986: 486), imagina ter tido já o sistema de português clássico um conjunto de oito fonemas vocálicos. O seu argumento é o de ter passado a existir, em posição acentuada e precedendo consoante nasal, um [a] aberto resultante de crase que, no português médio, tinha reduzido o hiato [a-a] à vogal [a]; exemplifica com a forma ga-anha > g[a]nha e com a forma nominal ga-anho > g[a]nho, que se terão passado a opor a formas como cama, cano, banho, com [a] em posição tónica. Mas a verdade é que esta época é ainda anterior à da oposição das marcas flexionais -amos (presente) e -ámos (pretérito perfeito) nos verbos da primeira conjugação; de modo que ainda não funcionava o par mínimo [a]/[ɐ], e estes sons estavam em variação alofónica.»
Sabe-se também que a diferença entre a aberto e a fechado é antiga, estando documentada desde o século XVI pelos primeiros gramáticos portugueses. No entanto, Castro (ibidem) acrescenta que, embora Fernão de Oliveira (1507-1581) distinguisse os dois sons em questão, o que lhe interessava era apontá-los como variantes da mesma vogal, descrição que mais tarde seria confirmada por Duarte Nunes de Leão, que só reconhecia a existência de um fonema /a/.
Noutra perspectiva, refira-se que, já no dealbar dos anos 80 do século passado, se ouvia a certos falantes dos grandes centros urbanos o fechamento do a resultante da contracção de dois, mesmo antes de consoante nasal ("gânho" em vez de "gánho"). Ora, se as cidades são espaços de inovação linguística, é possível que o desaparecimento do contraste antes de consoante nasal seja afinal recente. E é igualmente de lembrar que, quando o Acordo Ortográfico de 1945 impôs o acento diferencial, a intenção declarada foi distinguir duas formas diferentes da flexão e não reproduzir uma característica do português europeu-padrão.1
Em conclusão, não considero que a não distinção entre as terminações -amos e -ámos seja uma incorrecção. Ainda que não faça parte do padrão do português europeu, trata-se de uma variante aceitável, que é norma no Brasil e padrão em certas áreas dialecais (pelo menos, nos dialectos setentrionais portugueses).
1 Com efeito, no Acordo de Ortografia de 1945, Base XVII, lê-se:
«Assinala-se com o acento agudo, nos verbos regulares da primeira conjugação, a terminação da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo: amámos, louvámos, etc., e não amamos, louvamos, etc.
Serve aqui o acento agudo, não para indicar o timbre da vogal tónica, visto a pronúncia desta carecer de uniformidade (nem sempre aberta em Portugal, nem sempre fechada no Brasil), mas apenas para distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo (amamos, louvamos, etc.), em benefício da clareza do discurso, as formas pretéritas com aquela terminação.»
N.E. – Com o Acordo Ortográfico de 1990 – conforme a Base IX , acentuação gráfica das palavras paroxítonas –, o uso do acento agudo é facultativo nas formas verbais do pretérito perfeito do indicativo para distinguir do presente do indicativo.