DÚVIDAS

Os verbos ser e estar com um adjectivo

Estou a aprender o português (sou holandês) e queria fazer uma pergunta sobre o uso dos verbos ser e estar com um adjectivo. Neste caso é o pretérito perfeito, usado como adjectivo.

Sei bem que usa-se o verbo ser se o adjectivo descreve algo do substantivo caractarístico, algo «que não se muda rapidamente»; se as características são (estão?) variáveis, use-se estar. É claro que as regras duma língua natural não são tão exactas como as da matemática («uma casa branca será verde depois de a pintar de verde»), mas (claro) há também exemplos mais "complicados". Eu li por exemplo «sou/estou casado/solteiro». Na minha opinião, neste exemplo, «ser casado (solteiro)» pode-se comparar com «ser verde» (e, embora em ambos os exemplos este aspecto do substantivo possa-se mudar, isso não é o primeiro pensamento). Então, eu diria «sou casado». Mas também leio «estou casado» (ou solteiro)...

Isso tem a ver com o facto que o adjectivo é um pretérito perfeito? Com o verbo ser, isso usa-se normalmente para exprimir o tempo passivo («A janela foi partida pelo João»).

Também li (acho que é uma brincadeira) «Eu estou casado, mas a minha mulher está casada». Isso quer dizer que o homem não é tão "dedicado" quanto o casamento como a mulher?

Muito obrigado de antemão pela sua resposta!

Resposta

Esta é uma dúvida que qualquer falante não nativo do português tem dificuldade em ultrapassar, porquanto a fronteira entre os verbos ser e estar não é tão delineada quanto parece, e, apesar de termos tendência a generalizar regras para o uso destes dois verbos, a verdade é que aparece sempre um exemplo que desconstrói todo o percurso argumentativo. Por exemplo, generaliza-se, como o consulente refere, que o verbo ser é usado para demarcar algo «que não se muda rapidamente», mas dizemos: «Ele está morto», e não *«Ele é morto», etc., o que parece contrariar a generalização.

O consulente pergunta também se o emprego de um ou de outro verbo — no caso de casado, a possibilidade dos dois — tem que ver com o facto de o adjectivo ser formado por um particípio passado. A resposta é sim e não1: sim, se considerarmos a frase uma passiva adjectival (onde podem ser empregados os verbos estarficar ou continuar) que focaliza o estado resultante da transição sofrida, e não, se estivermos perante uma frase copulativa tradicional, onde o que condiciona o emprego de ser ou estar são as propriedades semânticas do adjectivo que predica o sujeito (nestas construções, tipicamente denominado por nome predicativo do sujeito). Por exemplo, um adjectivo simples como feliz admitiria também ambas as construções «sou/estou feliz».

Na literatura, considera-se dois traços semânticos,  [+/-transitório] e [+/-permanente], que parecem explicar o emprego destes dois verbos tão problemáticos para quem aprende português como língua estrangeira. Na resposta O uso dos verbos ser e estar pode ler uma descrição mais detalhada destes dois traços e encontrá-los associados a vários exemplos.

O que parece acontecer com o adjectivo casado (e com tantos outros) é que pode igualmente denotar uma transição e um estado permanente, com algumas diferenças, no entanto, quanto ao contexto em que se usam:

1. Eu sou casado (= estado permanente que caracteriza o sujeito).

2. Eu estou casado (= há uma mudança, uma transição de estado).

Por outras palavras, a frase 1 será mais usada num contexto em que duas pessoas se apresentam e indicam o que as caracteriza (tal como «sou português, sou estudante, etc.»). A frase 2 seria de esperar num contexto em que dois falantes já se conhecem, mas que houve uma mudança desde que falaram pela última vez — há um elemento novo/uma transição (entende-se que «agora estou casado»), mas, ao mesmo tempo, pode indicar, por si só, um estado transitório, algo que não é tido como permanente pelo próprio falante (por exemplo: «estou casado, mas não sei por mais quanto tempo»).

Isto prende-se com a última questão do consulente (que parece ter-se enganado, já que não há diferença entre as duas frases coordenadas adversativas). Será que o consulente queria dizer «Eu estou casado, mas a minha mulher é casada»? Se for o caso, é bem provável que se trate de uma brincadeira, e nesse sentido poderemos interpretar a frase da mesma forma que o consulente, já que a primeira frase, contraposta com a segunda, denota uma menor vinculação do sujeito ao adjectivo predicativo «casado». Neste caso, o falante assume o casamento como um fenómeno transitório.

Esperamos ter ajudado.

1 Consulte aqui uma resposta sobre o uso de ser e estar com particípios passados.

 

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