DÚVIDAS

Orações coordenadas explicativas introduzidas por «porque»

Gostaria de saber qual o motivo que leva a que raramente veja exemplos de orações coordenadas explicativas introduzidas por porque.

Tenho-me deparado sempre com exemplos onde consta pois. Por outro lado, também raramente vejo exemplos de orações subordinadas causais introduzidas por pois.

Em conversa com colegas, dizem-me «Os miúdos não as sabem distinguir se utilizarmos para os dois exemplos». Ora, sabendo nós que cada vez mais os alunos têm dificuldade em interpretar, creio que seria conveniente, desde cedo, fazê-los contactar com as diferentes hipóteses. Isto é como o falar/o oral. Cada vez mais ouço (inclusive a professores) «Eu já "falei" isso», «Eu dei "a ele"».

Acredito que, se não utilizarmos as palavras, no contexto correto, qualquer dia deixamos de ter esta maravilhosa (consciente de que também difícil) língua que é o português.

Resposta

O facto de nem sempre se assinalar a conjunção porque como introdutora de orações coordenadas explicativas parece ter lugar sobretudo em contexto escolar não universitário e estará relacionado com a procura de uma simplificação dos fenómenos gramaticais, de forma a auxiliar o estudo do aluno.

Na verdade, as orações coordenadas explicativas podem ser introduzidas pelas conjunções pois, porque, que e porquanto. Não obstante, a conjunção pois é frequentemente assinalada como prototípica, dado ter a capacidade de aparecer em inúmeras possibilidades de coordenação explicativa. Por seu turno, a conjunção porque (e também a conjunção que) apresenta, em algumas coordenadas explicativas, um comportamento menos claro, que a pode situar, do ponto de vista sintático, entre a subordinação e a coordenação. A título de exemplo, a orações explicativas introduzidas por porque (e por que) não admitem anteposição, o que acontece também com as orações introduzidas por pois:

(1) «Levanta-te, pois vai chover!» vs. «*Pois vai chover, levanta-te!»

(2) «Levanta-te, porque vai chover!» vs. «*Porque vai chover, levanta-te!»

Não obstante, ao contrário do que acontece com as orações introduzidas por pois, as orações explicativas introduzidas por porque admitem a colocação do pronome em posição pré-verbal:

(3) «Ele vai ter boas notas, pois emprestei-lhe os meus apontamentos.» vs. «*Ele vai ter boas notas, pois lhe emprestei os meus apontamentos.»

(4) «Ele vai ter boas notas, porque emprestei-lhe os meus apontamentos.» vs. «Ele vai ter boas notas, porque lhe emprestei os meus apontamentos.»

Estes são, todavia, domínios de análise que se afiguram complexos para o ensino de gramática no plano não universitário, pelo que não estão previstos nos programas de português.

A questão relacionada com a interpretação de causais e explicativas, que a consulente refere, pode, com efeito, assumir uma relevância central no ensino das coordenadas explicativas / subordinadas causais. Esta realidade remete para o plano semântico-discursivo e convoca a distinção entre causal real e causa de dicto. Assim, as orações subordinadas causais apresentam uma causa real (ou inferida) para a situação descrita na oração subordinante:

(5) «O João tem fome porque não tomou o pequeno-almoço.»

Em (5), o facto de não ter tomado o pequeno-almoço é apresentado como causa para a fome do João. Acrescente-se ainda que quando a relação entre as orações é de causa efetiva, a situação descrita na oração causal é, do ponto de vista temporal, anterior à situação descrita na oração subordinante.

Em (6), a situação é diferente, uma vez que a oração introduzida por pois não é interpretada como a causa direta da situação descrita como «João chegar do México»:

(6) «O João deve ter chegado do México, pois há luz em sua casa.»

A oração introduzida por pois apresenta, antes, uma explicação para o facto de se ter produzido a afirmação «O João deve ter chegado do México». A oração coordenada apresenta o facto que levou o locutor a concluir que a afirmação inicial é aceitável / possível e funciona como uma explicação ou uma justificação para o enunciado inicial. Esta relação de justificação do que é dito fica muito clara quando a coordenada explicativa justifica, por exemplo, uma ordem ou um conselho, como acontece em (7):

(7) «Senta-te, pois quero falar contigo!»

Perante estes elementos, fica claro que a interpretação correta das relações causais ou explicativas pode ser um fator importante na interpretação textual, tal como afirma a consulente1.

Por fim, acrescento que o Ciberdúvidas partilha consigo a consciência da importância do cuidado que se deve ter com a língua para que esta mantenha a sua identidade. Permita-me que conclua citando as palavras de João Carreira Bom (um dos fundadores do Ciberdúvidas, já falecido): «A língua é como um rio: sem margens, desaparece.»

Disponha sempre!

 

*Assinala a agramaticalidade da frase.

1. Para um maior aprofundamento da relação entre causais e explicativas, sugere-se a leitura de Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1814-1816 e 2006-2011.

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