DÚVIDAS

O valor modal do imperfeito: «não sabia que tinha...»

Por que a maior parte das pessoas conjuga os verbos nos tempos errados?

Por exemplo:

«Eu queria ir ao cinema com você!»

[queria é só se desistiu de querer por alguma circunstância ou se não tem mais condições de continuar querendo, porque já não dá mais tempo ou já não dá mais certo, ou seja, é quero nesse caso aí...]

«Eu não sabia que você tinha toda essa habilidade!»

[tinha é só se deixou de ter por alguma circunstância do destino ou se abandonou o que já tinha, ou seja, é tem nesse caso aí...]

Fiz a busca no Google (para ver se esclarecia de vez a respeito das dúvidas...), e isso só tornou o caso ainda mais confuso e desorientado!

Pois muito bem, no aguardo de seu retorno!

Resposta

Na verdade, não poderemos afirmar que nos casos apresentados os verbos estão conjugados erradamente. Para compreendermos o uso do imperfeito do indicativo, teremos de analisar os valores que este traduz: temporais ou modais.

As frases em análise incluem verbos conjugados no pretérito imperfeito do modo indicativo. Este tempo tem um valor semântico de passado, o que lhe permite localizar as situações num intervalo temporal anterior ao momento da enunciação.

Não obstante, pode ser também usado com um valor unicamente modal associado a diferentes intenções. Este uso observa-se com frequência na interação oral, pois o uso do imperfeito do indicativo permite atenuar o valor menos cortês associado ao presente do indicativo ou ao imperativo. Comparem-se as seguintes frases:

(1) «Quero um café.»

(2) «Traz-me um café.»

(3) «Queria um café.»

O cotejo entre as três frases coloca em evidência a capacidade modal que o imperfeito tem de atenuar o valor de ordem direta (mais ameaçador para o interlocutor), convertendo-o num pedido polido (menos ameaçador para o interlocutor), associado a uma intenção pragmática de delicadeza.

Outra possibilidade de uso com valor modal do imperfeito do indicativo está presente na segunda frase apresentada pelo consulente, aqui transcrita como (4):

(4) «Eu não sabia que você tinha toda essa habilidade.»

De novo, o imperfeito não é usado com valor temporal, pois não tem a função de localizar uma situação no passado. É antes usado para expressar que o locutor não tinha uma expectativa positiva relativamente a determinada habilidade do interlocutor1.

Um valor semelhante está presente na frase (5):

(5) «O João tinha o número de telefone do Pedro.»

 O imperfeito não identifica uma situação que já não se verifica no presente, antes veicula a expectativa positiva do locutor relativamente ao facto de o João ter o número de telefone do Pedro.

Disponha sempre!

 

 1. Para maior aprofundamento dos valores associados ao imperfeito do indicativo, cf. Oliveira, F. in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 518-524

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