DÚVIDAS

A pronúncia e grafia do substantivo x-ato

* Aportuguesamento da marca registada X-ACTO®

Por simples análise à palavra x-acto [ɛks-aktou], fica evidente que a corruptela X-ATO, tanto em forma escrita como fonética, e outras semelhantes da marca X-ACTO® [ɛks-æktou] resulta[m] do afastamento erróneo do dífono [cs] representado pela letra xis na sua primeira sílaba x-, cuja pronúncia [ɛks] é completamente desarticulada mediante a sua substituição pela forma escrita xis, que é o nome da própria letra. Na sequência fonética x-acto [ɛks-æktou], a articulação do xis é insuprível pelo seu próprio nome, na medida em que o xis aqui não é uma figuração ou adjectivo de incógnita ou unidade desconhecida, mas o xis do alfabeto latino pronunciável pelo dífono [cs] com o apoio vocálico [ɛ].

* Origem e formação da marca registada X-ACTO®

Ao decompor-se a marca X-ACTO®, pronunciada em inglês [ɛks-æktou], fica demonstrado que a sílaba inicial X- originalmente é uma corruptela criada de propósito (ainda no início dos anos 1930) com o adjectivo castelhano exacto, que se pronuncia [ɛks-aktou] para se chegar à escrita truncada X-ACTO, porém mantendo sempre a mesma pronúncia [ɛks-aktou]; e para esse fim a vogal e- foi suprimida no início da primeira sílaba ex- na sequência fonética do adjectivo em castelhano exacto, cuja grafia, por acaso, então em 1930, era igual à grafia de igual adjectivo em português, e articulado de modo quase igual. Aliás, a supressão da vogal e inicial não dificulta o reconhecimento do adjectivo exacto [ɛks-aktou], quer seja pronunciado em castelhano, quer seja em português, ou ainda em inglês [ɛks-æktou].

* O aportuguesamento irregular da marca X-ACTO®

Quando se faz a desarticulação da consoante x (dífono cs), pronunciada [ɛks], como unidade fonética para se construir em português a corruptela xis- baseada apenas no nome da letra, o seu valor fonético ex- já não pode ser realizado pela forma escrita xis-; e uma vez feita essa desarticulação o adjectivo exacto, tanto em português como em espanhol, fica truncado e a parte restante toma a aparência escrita acto que é a mesma forma escrita do substantivo acto em português. Assim, em teoria, a sílaba inicial X- da forma vocabular X-ACTO é convertida em partícula incógnita, a qual conforme os padrões da língua deve ser transposta para o final da palavra, onde forma a locução Acto X (sem hífen). A forma Acto X é a única adaptação regular aos padrões da língua em processo igual ao processo que trouxe ao português a locução «raios x» (lido xis), adaptada do inglês x-rays [eksreiz] ou mesmo directo do alemão X-Strahlen (Röntgenstrahlen).

* Aportuguesamentos anormais da marca X-ACTO®

Como se vê a derivação imprópria da marca X-ACTO® nada tem a ver com outros casos de palavras que sofreram algum processo de aportuguesamento em maioria verificados na variante brasileira da língua, exemplicados pelos seguintes casos: chiclete, fórmica, gilete, jipe, lambreta, licra, óscar, pírex, polaróide, rímel, tartã ou vitrola. Além disso, há que se considerar que as corruptelas da marca X-ACTO® só começaram a ter uso em Portugal, ainda quando a maioria das pessoas que as usava nunca tinha visto antes qualquer objecto com a marca X-ACTO®, e tão-pouco sabia que se tratava de uma marca. Estas pessoas, induzidas em erro provocado por comerciantes inescrupulosos, desataram a utilizar as corruptelas da marca X-ACTO®, como nome genérico dado a um certo e então desconhecido objecto que deveria ter começado a ser conhecido em português pelo nome: cortador ou mesmo "cúter" (snap-off blade cutter) OLFA® e que se refere ao invento do japonês Yoshio Okada em 1956 e também à faca (knife Stanley) mais usada para cortar alcatifa, anteriormente chamada naifa (do inglês knife) e mesmo ainda hoje designada na linguagem popular «naifa do japão» (knife OLFA®).

* Imprecisão fonética dos aportuguesamentos impróprios da marca X-ACTO®

A prova de que a maioria das pessoas que usam corruptelas da marca X-ACTO® nunca viu antes a marca X-ACTO® escrita alguma vez é sustentada precisamente pelas pesquisas feitas em corpora e em motores de busca que revelam ocorrências das formas "xizato" (em maior número até do que "xizacto"), o que demonstra a propensão que os falantes têm de aproximar palavras não escritas e até desconhecidas aos padrões da língua corrente – portanto não se trata só de palavras estrangeiras. A marca X-ACTO® começou a constar dos dicionários de língua portuguesa, com a grafia x-acto somente a partir de 2003 (DLP Editora, edição 2003) e depois no VOP como estrangeirismo, logo não se pode suprimir dessa grafia o fonema c, tal como também não se suprime o fonema c da palavra facto, por aplicação das regras do novo AO de 1990, pois a sua pronúncia sempre foi muito clara na sequência fonética ac-to da corruptela [xizacto]. A qualificação de faca de corte exacto é atribuída à faca de pena devido ao ângulo de corte da sua lâmina situado entre 13° e 19°, enquanto em outros instrumentos, como por exemplo, o cortador (cutter) OLFA® ou mesmo a faca (knife) OLFA® o ângulo de corte da sua lâmina está situado a 0°, portanto não há. Este é o motivo pelo qual o nome faca X-ACTO® [ɛks-æktou] não pode ser dado a qualquer outro instrumento de corte que não possua essa característica de precisão. Bisturi [não cirúrgico], estilete [de precisão] ou faca X-ACTO® [ɛks-æktou] são, respectivamente, os nomes genéricos dados em Portugal e no Brasil à faca de pena composta por uma pequena lâmina que é substítuível, muito afiada e ajustável por encaixe num pequeno mandril montado na ponta de um cabo tubiforme. Note-se, esta faca de pena não deve ser confundida com a “pequena lâmina” que se liga por articulação a um cabo de resguardo, designada correntemente canivete e classificável também como faca de pena. Mediante este comentário, torna-se evidente que somente por ignorância é que alguém pode pegar na corruptela «XIS-ATO» obtida do nome de marca registada X-ACTO® [eks-æktou] e atribuí-la ao cortador (snap-off blade cutter) OLFA® ou à faca OLFA® (conhecida também por “naifa do japão”). Certos dicionários portugueses fazem registos de entrada no conjunto de significações e explicações referentes à corruptela «X-ATO» da marca X-ACTO® [eks-æktou] e outras corruptelas semelhantes.

Seria providencial que uma resposta do Ciberdúvidas pudesse ajudar a rectificar as acepções impróprias para afastar a continuação das misturas de nomes genéricos, principalmente quanto à corruptela «xis-ato» que é uma forma fonética de uso frequente em Portugal, porém, como se vê, completamente errada.

 

[N. E. – O consulente segue a ortografia anterior à norma em vigor, a do Acordo Ortográfico de 1990.]

Resposta

Agradece-se ao consulente a extensa exposição sobre o uso do nome comercial X-Acto em Portugal. Pode concordar-se com ela em muitos pontos, sobretudo quanto aos que permitem ajuizar que x-ato não será a melhor grafia para a palavra em questão. Observe-se, porém, que é possível e até legítimo escrever xisato (ou xis-ato) apenas atendendo à fonética popularizada entre falantes de Portugal. Trata-se, é certo, de uma forma popular, que se confinará ao registo informal, se outro termo não houver para nomear a ferramenta em apreço.

Este caso encontra algum paralelo noutro exemplo, o de peclise um aportuguesamento fonético e nada criterioso da expressão francesa pied à coulisse –, que, embora registado em alguns dicionários, tem associada à respetiva entrada a indicação de uso que a relega para o registo informal. Assim, pode achar-se (ou acha-se mesmo) que paquímetro constituirá o termo mais adequado, como termo técnico de formação erudita, em princípio, de consagração normativa menos discutível, e, talvez por isso, sem o estigma de iliteracia que rodeia a génese de peclise. Com x-ato, acontece, no entanto, pelo menos, em Portugal, que a alternativa lexical existente, constituída pelas palavras estilete e bisturi, não parece ter uso tão extenso ou tão saliente, situação indicativa de que, no fim de contas, o caso de peclise não trará grande ajuda.

Por outro lado, a grafia x-ato, como atualização de x-acto no quadro da norma ortográfica em vigor, não parece corresponder a um caso em que se aplique tal alteração, porque a anteriormente usada na escrita do português – como se referiu, x-acto – exibe um jogo gráfico e um hífen que só em inglês se justificarão. Se o pretendido era fixar o aportuguesamento do nome comercial, porque não, por exemplo, grafar "xisato", mais fiel à leitura à portuguesa do nome inglês e, ao mesmo tempo alusivo à interpretação dos elementos originais (xis + ato ou acto)1?

Quanto à adaptação proposta pelo consulente  – "acto x" ou "ato x" –, embora possa fazer sentido, dir-se-ia que ela não se furta ao juízo negativo que recai sobre x-ato. É que, se x-ato é forma errónea (como declara o consulente), decorrente da interpretação literal, fonética, "à portuguesa", então, torna-se difícil aceitar que se argumente com a sintaxe portuguesa, em que o atributo se segue ao nome, para identificar "ato x" como alternativa mais adequada, porque essa transposição não deixaria de pressupor uma reanálise igualmente à portuguesa, portanto, deturpadora do nome inglês X-Acto e do jogo formal e semântico associado.

Seguem-se comentários às considerações do consulente:

1. «Na sequência fonética x-acto [ɛks-æktou] a articulação do xis é insuprível pelo seu próprio nome, na medida em que o xis aqui não é uma figuração ou adjectivo de incógnita ou unidade desconhecida [...]»

Do ponto de vista meramente descritivo – portanto, não normativo –, compreende-se que, no contexto da história recente do português de Portugal, o nome comercial X-Acto  tenha começado a ser lido de acordo com os princípios gerais de correspondência entre ortografia e fonia. É plausível que, no começo da história da comercialização e circulação do objeto em apreço, os portugueses que lessem o respetivo nome não considerassem uma eventual relação com o adjetivo exacto (na ortografia de 1945 ou mesmo anterior) ou exato (na ortografia de 1990), grafias que têm tradicionalmente a pronúncia [iˈzatu] – cf. transcrições fonéticas do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, do dicionário de língua portuguesa da Porto Editora e do Vocabulário Ortográfico do Português.

2. «[...] uma corruptela criada de propósito [...]»

Trata-se efetivamente de um jogo gráfico com base na reanálise  e truncação2 de exacto, num processo que é muito comum na linguagem publicitária.

3. «A forma Acto X é a única adaptação regular aos padrões da língua em processo igual ao processo que trouxe ao português a locução raios x (lido xis) adaptada do inglês x-rays [eksreiz] ou mesmo directo do alemão X-Strahlen [...]»

É uma afirmação discutível, porque estamos no domínio da linguagem comercial e das suas marcas, as quais têm dado origem a vários nomes comuns epónimos. Exemplo típico, mencionado pelo consulente, é o de gilete, «lâmina descartável de barbear», resultado da conversão ou da extensão de significado do nome próprio Gillette.

4. «Como se vê a derivação imprópria da marca X-ACTO® nada tem a ver com outros casos de palavras que sofreram algum processo de aportuguesamento em maioria verificados na variante brasileira da língua, exemplicados pelos seguintes casos: chiclete, fórmica, gilete, jipe, lambreta, licra, óscar, pírex, polaróide, rímel, tartã ou vitrola.»

X-ato tem que ver com as outras palavras mencionadas pelo consulente, porque, como elas, é uma sequência lida exatamente na sua linearidade,

5- «a maioria das pessoas que usam corruptelas da marca X-ACTO® nunca viu antes a marca X-ACTO® escrita alguma vez»

Não é necessário ler X-ACTO para pronunciar "xis-ato". Basta que alguns falantes tenham tido contacto com a forma gráfica e a tenham interpretado literalmente, aplicando as convenções que regem a relação fonia-grafia em português. Muitos falantes poderão ter depois contactado com a nova palavra no contexto da oralidade, portanto, num processo de difusão lexical, não forçosamente acompanhado da forma escrita.

Muito agradecendo ao consulente o reconhecimento da importância da atividade do Ciberdúvidas, resta acrescentar que não será ainda aqui que se encontrará uma resposta satisfatória para o enquadramento normativo deste caso que é bem ilustrativo do choque entre diferentes padrões de formação de palavras, envolvendo distintos idiomas.

 

1 Sugiro que se escreva uma única palavra gráfica com s, em alusão ao nome da letra x. Poderá também propor-se xis-ato, com hífen, aceitando que se trata de um composto formado pelo nome da letra x e pelo nome comum ato (ou acto na ortografia de 1945). Cf. Cláudia Pinto "Xis-Acto/xis-acto", Dúvidas linguísticas/Flip, 13/08/2019 e Hélder Guégués, "Exacto", Linguagista, 15/06/2013.

2 Sobre truncação, ver Graça Rio-Torto et alii, Gramática Derivacional do Português, Imprensa da Universidade de Coimbra,  2.ª edição, 2016, p. 484.

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