Não sendo impossível, o parecer do consulente confronta-se com alguns problemas de uso do termo dona, quer no Brasil, quer em Portugal, quer, ainda, noutro país ou região de língua portuguesa.
Assim:
– Em relação ao uso de senhora, descrito em 1), ocorre aproximadamente o mesmo em Portugal, embora aqui,como vocativo, se tenda a dizer «minha senhora», e nunca ou raramente «dona».
– O título de dona, como indicado em 2, no comentário, tem sempre associado o primeiro nome, e nunca o sobrenome (em Portugal, apelido): uma pessoa que se chame Ivete Silva será sempre «a Dona Ivete» ou «a Senhora Dona Ivete», mas não *«Dona Silva» nem *«Senhora Dona Silva» (o * indica que é uso não aceite).
– Sobre 3, madame pode efetivamente ser usado em tom sarcástico, e até se regista a forma vulgar madama que reforça essa intenção. Sobre senhorita, nada a acrescentar, a não ser o facto de não se empregar em Portugal.
Acontece que, de acordo com 2, "Dona Bovary" é impossível, porque é sobrenome; o mais que se poderá fazer é adaptar como «Dona Emma» (ou «Dona Ema»), uma vez que o primeiro nome da personagem é Emma (Ema em português"). Esta solução não será a mais satisfatória, porque, entre outros motivos, no romance de Flaubert a personagem do marido, Charles Bovary, é de enorme importância, como se pode supor num romance que aborda o adultério.
Em alternativa, seguindo modelo de «senhora Thatcher» ou «senhora Merkel», que é frequente nos textos mediáticos, poderia propor-se «Senhora Bovary», uma solução preferível à anterior e muito semelhante ao que se faz em várias línguas eslavas (por exemplo, em polaco, sérvio ou ucraniano), em húngaro e até em traduções alemãs mais antigas. Note-se, porém, que «Senhora Bovary» ou «Sra. Bovary» não tem de ser opção liminarmente excluída, sobretudo quando, no corpo do texto traduzido, se faz referência à personagem.
Dito isto, afigura-se, mesmo assim, discutível que o título passe a Senhora Bovary. Há, pelo menos, duas razões que contrariam essa possibilidade. Primeiro, a longa tradição que o título francês tem, de tal maneira que passa intacto para outras línguas próximas do português sem tradução (cf. espanhol, italiano, catalão). Depois, o título e forma de tratamento madame não só se adaptou ao português, mas, entre os seus falantes, continua perfeitamente inteligível.