O caminho que vai do erro à norma é longo e irregular, tão longo e irregular como a história dos povos.
No sistema não unitário que é uma língua, entrecruzam-se diversos subsistemas resultantes de situações sociais, históricas, culturais e geográficas também diversas.
Lindley Cintra e Celso Cunha, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, distinguem «três tipos de diferenças internas que podem ser mais ou menos profundas:
«1.º - Diferenças no espaço geográfico ou variações diatópicas (falares locais, variantes regionais e, até, intercontinentais);
«2.º - Diferenças entre camadas socioculturais ou variações diastráticas (nível culto, língua padrão, nível popular, etc.);
«3.º - Diferenças entre os tipos de modalidade expressiva ou variações diafásicas (língua falada, língua escrita, língua literária, linguagens especiais, linguagem de homens, linguagem de mulheres, etc.).»
Não existe, pois, a norma mas normas que actuam na prática de uma língua e dirigem o seu uso no tempo e no espaço. E essas normas ou variedades linguísticas são estruturadas e correspondem às necessidades dos seus falantes. Estudanta, ajudanta, parenta, governanta são formas que a "norma popular" foi afeiçoando ao modo "mais normal" da formação do feminino em português: a terminação em -a.
A par desta tendência, no entanto, existe nos falantes de certos estratos sociais e nos utentes de determinadas modalidades expressivas uma avaliação distinta do uso destas formas derivadas do particípio presente latino. É, de certa maneira, um sentimento de que o "certo " é a forma erudita, próxima do étimo e da sua flexão no latim. É a língua padrão que, sendo embora uma das variedades da língua, se impõe como modelo, como norma de toda a comunidade. E, se tal norma já integrou formas como infanta, governanta e parenta, o mesmo não acontece com muitas outras: amante, falante, ouvinte, pedinte, contribuinte, viandante, viajante, utente, paciente, etc., etc.
As "normas" diferentes para classes sociais ou grupos cultural e profissionalmente diversos constituem o miolo da sociolinguística e originam análises interessantes. Dizer rapariga ou moça, alcatruz ou copo, presente ou prenda, casa ou vivenda, prato (refeição) ou o comer – é lexicalmente o mesmo, mas não tem os mesmos matizes regionais, sociais ou culturais, e os falantes usam uma ou outra forma consoante o seu berço, a sua formação cultural, a sua situação na sociedade.
É neste enquadramento que devemos analisar o uso de senhora presidente ou senhora presidenta.
Presidir, para as mulheres, é função muito recente, milénios depois da época quase mítica do matriarcado. Talvez por isso, é também recente a frequência e premência com que se levanta o problema do feminino da palavra significante do conceito "aquele(a) que preside".
No nível culto da língua, na língua padrão, na língua escrita, em certos registos da língua literária, na linguagem especial (ou na "língua de pau") da administração pública, tomando como referência o particípio presente latino, de acordo, aliás, com a "lei" que rege a formação de tantos substantivos ou adjectivos substantivados provenientes desse particípio, não tenho dúvida de que se escreverá /dirá senhora presidente. Dizer/escrever presidenta, na fala/escrita destes utentes, aparece ainda com conotações irónicas. A sério, diz-se/escreve-se a presidente.
Não admitir estas diferenças é apontar aos falantes embaraços evitáveis. A língua deve funcionar como instrumento de comunicação e não como um fim em si mesmo. O facto de uma expressão ser correcta não a recomenda em todas as circunstâncias.
Tenho, aliás, imensa curiosidade quanto ao que sentirá a dr.ª Edite Estrela, defensora da forma "feminizada", quando um subordinado ou um munícipe a tratar por Senhora Presidenta da Câmara Municipal de Sintra. Lá no íntimo, não pensará a presidente: «Este tipo está a gozar comigo?»
P.S. Algo diverso se passa com outros casos, como ministra e directora, que têm origem diferente e já são aceites. Mas juíza, dizia-me há tempos um advogado, a propósito de uma resposta de Ciberdúvidas, pode levantar melindres semelhantes aos da presidenta.