Agradeço as palavras simpáticas com que se refere ao meu trabalho. Agradeço igualmente a atenção que dispensa ao Ciberdúvidas. Agradeço, finalmente, a possibilidade de retomar um tema, sempre polémico e sempre incompleto, como é o das palavras compostas e sua flexão.
Devo, antes de mais, declarar o meu total desconhecimento, a nível de investigação científica, acerca deste tema. A minha posição é baseada na análise de vários exemplos; na explicação encontrada em algumas gramáticas e na tentativa de formular uma explicação que abranja o máximo de situações.
A regra que aponta não é uma regra indiscutível da língua portuguesa, ou seja, não é uma regra intrínseca, como o é, por exemplo, a regra que diz que a ordem canónica da língua portuguesa é SVO, ou seja, 1.º o sujeito – e seus modificadores –, depois o verbo e seus complementos, sendo que, se o verbo for transitivo directo, o primeiro complemento a ocorrer é o complemento directo. A regra que enuncia é, pois, uma tentativa, de alguns gramáticos, no sentido de explicarem uma dada situação.
Vejamos como os gramáticos tratam este assunto.
Napoleão Mendes de Almeida, na Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 44.ª ed.; 4.ª tiragem, 2002, diz que «Nos adjetivos compostos, só o último elemento se pluraliza» ( p. 145).
Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo,1.ª ed., 1984, escrevem: «Nos adjectivos compostos, apenas o último elemento recebe a forma plural» ( p. 253).
Maria Helena de Moura Neves, na Gramática dos Usos do Português,1. ª ed., 2000, por seu lado, é menos categórica: «Os adjetivos compostos em geral recebem marca de plural apenas no último elemento»( p 228).
Evanildo Bechara, na Moderna Gramática da Língua Portuguesa, 37.ª ed, revista e ampliada, 2001, dá a mesma informação, mas acrescenta: «Com exeção dos casos mais gerais, não tem havido unanimidade de uso no plural dos adjetivos compostos, quer na língua literária, quer na variedade espontânea da língua…» (p.146).
Pilar Vasques Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz, na Gramática da Língua Portuguesa, 1989, dizem: «Quando o adjectivo é formado por dois adjectivos ou por um adjectivo e um substantivo, ambos recebem as desinências de feminino e de plural». E acrescentam: «Mas, se se trata de adjectivos gentílicos, apenas o segundo é afectado pelas marcas de feminino e de plural» (p. 384).
Alina Villalva, na Gramática da Língua Portuguesa, 5.ª ed., 2003, de Mira Mateus e outras, reconhecendo, embora, uma maior ocorrência de compostos com dois nomes, apresenta situações em que num composto por dois adjectivos só flexiona o segundo, como em luso-brasileiro – luso-brasileiros –, chamando a atenção para o facto de estes compostos serem adjectivos. A par destes, apresenta outros como surdo-mudo – surdos-mudos; trabalhador-estudante –trabalhadores-estudantes, que, mantendo a classe gramatical de adjectivos, flexionam as duas formas.
Interpretação semelhante à de Alina Villalva é possível extrair da obra de Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos, Inovação Lexical em Português, Edições Colibri, 2005.
Da leitura efectuada, gostaria de realçar algumas obras: a de Evanildo Bechara e a de Maria Helena de Moura Neves, pela extensa explicação de que ressalta, sobretudo, a dificuldade em fixar uma norma que sirva todas as situações. A de Pilar Vasques Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz, por se aproximar da verdadeira utilização dos adjectivos compostos, assumindo claramente, sem, todavia, ser exaustiva, que há situações em que ambos os adjectivos flexionam, a par de outras em que apenas o segundo altera. A de Alina Villalva e a de Margarita Correia e Lúcia San Payo de Lemos, as mais recentes e as mais exaustivas na forma de colocar o problema.
Quanto aos exemplos que o consulente Fernando Bueno apresenta e dando conta da pesquisa que fiz, num único dicionário, Aurélio XXI (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), posso dizer:
A – Nos compostos com nomes de cores ocorrem as duas situações de plural – ou só no segundo elemento, ou nos dois elementos: azul-celeste, plural: azul-celestes e azuis-celestes; azul-escuro, plural: azul-escuros e azuis-escuros; azul-marinho, plural: azul-marinhos e azuis- marinhos; azul-claro, plural:. azul-claros e azuis-claros; azulão-bicudo, plural: azulões-bicudos; rubro-negro, plural: rubro-negros. Esta situação ilustra, a meu ver, uma fase de indecisão face ao plural a adoptar, como referi na resposta anterior. Os dicionários elaborados em Portugal são mais parcos na apresentação de plurais, registando, maioritariamente, o plural nas duas palavras, ou não registando nenhuma flexão.
B – A série de compostos médico-hospitalares, financeiro-orçamentárias, político-partidárias e esquelético-musculares corresponde ao que designei na resposta anterior por compostos ocasionais, uma vez que, mais do que a um conceito equivalem a um processo de associar, em determinadas circunstâncias, dois conceitos, que não constituem necessariamente um conceito novo, que passe a constituir uma nova palavra, mas sim a junção (circunstancial), ou coordenação de dois, ou mais, conceitos constituintes. Nos compostos assim formados, tanto quanto me foi dado observar, o plural acontece apenas no segundo elemento.
C – O mesmo acontece com os compostos que designam os habitantes de uma região ou a característica de alguém que integra traços de mais do que uma cultura, como se verifica em anglo-americanos.
Em síntese, nos compostos constituídos por dois adjectivos, ou que, no seu conjunto final, constituem um adjectivo podemos identificar quatro situações:
1 – São compostos ocasionais, ou seja, cada uma das palavras que os compõe pode surgir como palavra autónoma: político-partidárias (políticas e partidárias); político-financeiras (políticas e financeiras), etc. Note-se que, neste caso, a composição não ocorre entre duas palavras completas, mas entre um radical a que se acrescenta a vogal de ligação -o (polític + o), na posição inicial e uma palavra completa, que assume a flexão, como segundo elemento;
2 – Designam os habitantes de determinada região ou as pessoas que acumulam traços de culturas diferentes: luso-brasileiro – luso-brasileiros; sul-africano –sul-africanos, etc. Note-se que, também aqui, o primeiro elemento pode ser encarado como um radical, ou melhor, como um elemento de ligação, sem vida autónoma. Chamo a atenção para o facto de, no dicionário Houaiss, já se fazer a distinção entre o nome sul, ou norte, enquanto palavra autónoma e o elemento de ligação homónimo, com entrada individualizada e devidamente assinalado como elemento de composição «sul-»; norte-»;
3 – São compostos por um advérbio e um adjectivo verbal: bem-vindo – bem-vindos;
4 – São compostos por dois adjectivos numa relação de coordenação, ou de relativa autonomia: surdo-mudo – surdos-mudos; social-democrata – sociais-democratas; trabalhador-estudante – trabalhadores-estudantes; democrata-cristão – democratas-cristãos, etc.
Devo, antes de continuar, alertar para o facto de a tentativa de explicação, ou sistematização, que acabo de fazer ser da minha inteira responsabilidade, ainda que ancorada nas pesquisas feitas, e nada mais vale do que ser uma explicação, porventura bem mais humilde, a juntar a todas as outras que, sobre o assunto, se têm publicado nestas páginas.
Nas situações 1 a 3, o primeiro elemento é um radical ou uma palavra invariável, o que justifica que não tenha flexão. Esse facto não ocorre em 4, cujos compostos são constituídos por palavras plenas, que, por isso, e porque não há entre elas uma relação de subordinação ou de determinação, flexionam ambas.
Perante o exposto, mantenho a minha posição face ao plural de social-democrata – sociais-democratas.
[Sobre esta matéria controversa cf. O plural de social-democrata + Ainda sobre o plural de social-democrata + Ainda e (quase sempre) social-democratas/sociais-democratas?]