Em latim, a ideia de querer era expressa pelo verbo velle. Trata-se de um verbo irregular, como se pode constatar pela conjugação do presente do indicativo, que figura na seguinte tabela:
volo («quero») volumus («queremos»)
vis («queres») vultis («quereis»)
vult («quer») vult («querem»)
Com o decorrer dos séculos, este verbo sofreu um processo natural de regularização no chamado latim vulgar. No século sexto da nossa era, encontra-se atestada a forma volimus (em vez de volumus); do século seguinte, temos testemunho da forma volemus e, na célebre crónica de Fredegário, deparam-se-nos dois exemplos de volestis (em vez de vultis); já no século oitavo, encontra-se documentada a forma voles (em vez de vis).
Por estas alturas, o infinitivo velle teria assumido a forma *volere, e o presente do indicativo apresentaria aproximadamente a seguinte composição(1):
*vǫlo («quero») vǫlimu(s), volẹmu(s) («queremos»)
vǫle(s) («queres») volęste(s), *volẹte(s) («quereis»)
*vǫle(t) («quer») *vǫlen(t) («querem»)
(As formas precedidas de * não estão documentadas.)
É de *volere e destas formas regularizadas que derivam o francês vouloir, o italiano volere, o romeno vrea e o catalão e occitano voler, para não referir outras línguas românicas menos conhecidas.
Este verbo, que pegou de estaca em grande parte da chamada România (não confundir com Roménia), não deixou, porém, qualquer vestígio nas línguas romance do oeste da Península (galego-português, castelhano e dialetos asturo-leoneses), exceto nas obras do escritor castelhano Gonzalo de Berceo (c. 1198-antes de 1264), nas quais se nos deparam os vocábulos sivuelqual ou sivuelqué («qualquer») e sivuelquando («qualquer dia»).
Nestes falares da Península, como se sabe, o campo semântico de velle/*volere está ocupado pelo verbo querer, o qual, como o consulente bem sugere, provém do latim quaerere (também grafado quærere), que significava «buscar, procurar; procurar saber, perguntar; inquirir»). Fora da Península, importa ainda referir o sardo, língua que, numa das suas principais variantes, o logudorês, exprime a ideia de «querer» pelo verbo chèrrere, igualmente derivado de quaerere.
Voltando à Península, verificamos que os primeiros documentos galaico-portugueses e castelhanos, de finais do século XII e princípios do século XIII, já nos mostram o verbo querer com o significado de velle/*volere, como nesta cantiga de amor de Bernardo Bonaval:
«A Bonaval quer’ eu, mia senhor, ir
e, dês quand’eu ora de vós partir,
os meus olhos non dormirán.» (CV 660, CBN 1003)(2)
Ou nestoutra de Nuno Eanes Cerzeo:
«Agora me quer’ eu já espedir
da terra, e das gentes que i son.» (CA 389, CBN 109)(1)
Na seguinte cantiga de amor do rei D. Dinis, podemos mesmo apreciar três formas diferentes do verbo querer na mesma estrofe:
«Des que vos vi, sempr’ o maior
ben que nos podia querer,
vos quigi, a todo meu poder;
e pero quis Nostro Senhor
que nunca tevestes por ben
de nunca mi fazerdes ben.» (XVII)(4)
Deste texto podemos tirar nova ilação a respeito deste verbo: no falar de então, a primeira pessoa do pretérito perfeito (quigi) diferia da terceira pessoa (quis), ao contrário do que sucede em português moderno.
Estava, pois, de pedra e cal o verbo querer no português que então se falava e escrevia. O desaparecimento de velle/*volere no ocidente da Península e a substituição deste verbo por quaerere levantam, porém, uma importante questão: quando, como e porque é que se deu essa alteração?
A escassez de testemunhos escritos não nos permite tirar grandes ilações. Sabemos que, em textos anteriores, escritos num latim já extremamente “romanizado”, o verbo quaerere já apresentava o significado de velle. José Pedro Machado, por exemplo, cita a forma quesieri («quiser»), que aparece num documento de 897 e noutro de 999(5).
Para lá da fonteira, deparam-se-nos dois documentos deveras reveladores. O primeiro, conhecido por Glosas Silenses, data de finais do século XI. Trata-se de um acervo de comentários em língua romance peninsular que os copistas medievais apunham nas margens de um texto em latim, a fim de esclarecer os termos ou expressões que pudessem suscitar dúvidas. Nesse documento, salta à vista a seguinte pérola:
secum retinere uoluerit : consico kisieret tenere(6) («quiser ter consigo»)
Verificamos, pois, que o copista sentiu necessidade de glosar a forma uoluerit (também grafada voluerit) do verbo velle substituindo-a pela correspondente forma derivada do verbo quaerere, com a particularidade de a ter grafado com k.
O segundo documento, que data de 1076, é ainda mais surpreendente. Trata-se do Foro de Sepúlveda, onde se pode ler:
Omnis miles qui voluerit bene buscare de senior [...] vadat a quale senior quaeserit [...]. (7) («Todo o cavaleiro que achar por bem procurar um senhor [...], que vá ter com o senhor que quiser [...].»)
Este trecho tem a particularidade de nos mostrar o verbo quaerere com roupagens puramente latinas – tanto no que diz respeito à grafia como à conjugação – mas imbuído do novo significado («desejar»). Mais curioso ainda, na mesma frase, encontra-se também uma forma do verbo velle, com um significado muito próximo do anterior!
Voltemos, então, a nossa atenção para este verbo quaerere, para tentar perceber o motivo por que terá prosperado na Península. O significado primordial deste verbo era «buscar, procurar, andar à procura de», como se infere do seguinte passo de Terêncio (Haut. 844): te ipsum quaerebam («andava mesmo à tua procura»). Este significado primordial, bem como os significados cognatos de «procurar saber, perguntar, inquirir; procurar obter», não se restringiram ao período da latinidade clássica e perduraram ao longo de muitos séculos. Na Vulgata, por exemplo, o Evangelho de S. Lucas reza assim (12:30‑31): Haec enim omnia gentes mundi quaerunt; Pater autem vester scit quoniam his indigetis. Verumtamen quaerite regnum eius; et haec adicientur vobis («As pessoas do mundo é que andam à procura de todas estas coisas; mas o vosso Pai sabe que tendes necessidade delas. Procurai, antes, o seu reino, e estas coisas ser-vos-ão dadas por acréscimo»).
Não é difícil de entender a deriva semântica sofrida pelo verbo quaerere na Península. De facto, normalmente só buscamos aquilo que queremos encontrar, e do desejo de encontrar certa coisa facilmente nasce o desejo pela coisa em si. Embora velle e quaerere tivessem campos semânticos bem distintos em latim, podemos considerar que quaerere, pelo seu significado particular, continha em potência a ideia de desejo ou de vontade.
Corominas, o célebre filólogo catalão, não hesitou em atribuir considerável longevidade a esta alteração semântica: «Já na Antiguidade QUAERERE pode tomar o sentido de ‘desejar, esforçar-se por’ quando acompanha um infinitivo em frases, como a de Horácio speciosa quaero pascere tigres(8) (Od. 3, 27, 56), o que no período clássico se limita a certos poetas, mas logo aparece num ou outro prosista da Idade da Prata [...], e sobretudo torna-se habitual nos padres da Igreja e noutros autores cristãos»(9). Num interessante estudo dedicado à evolução semântica do verbo quaerere, Maggiore cita vários exemplos extraídos das obras de Tertuliano, Lúcifer e Comodiano que corroboram esta asserção de Corominas(10).
Se a deriva semântica de quaerere já estava latente no período clássico e presente no pós-clássico, a verdade é que faltava um fator que propiciasse o seu florescimento na Península: o desaparecimento de velle/*volere. Este fenómeno, porém, é difícil de explicar. José María Anguita, que estudou a fundo esta questão, afirmou com razão que «o desaparecimento de uelle nos romances ocidentais terá de estar associado a um acontecimento linguístico de certa gravidade», por se tratar de «um dos verbos mais funcionais do latim, funcionalidade que manteve nas restantes línguas românicas»(11). Anguita identifica claramente esse acontecimento afirmando que «na parte ocidental da área linguística delimitada, na Galiza e no Norte de Portugal, teve lugar uma evolução fonética cujo percurso é possível documentar parcialmente entre os séculos IX e XI. Trata-se de um fenómeno privativo desta área, e tão importante, que pode ser considerado um dos traços distintivos do galego-português: a perda do ‑l- intervocálico»(12)(13).
De facto, neste aspeto, o português contrasta nitidamente com o castelhano, que não manifesta tal tendência. Vejamos alguns exemplos:
Latim Português Castelhano
aquila(m) > águia águila
colore(m) > cor color
filu(m) > fio hilo
malu(m) > mau malo
pala(m) > pá pala
volare > voar volar
voluntate(m) > vontade voluntad
Segundo este autor, o verbo velle/*volere «teria ficado gravemente afetado pela queda do -l- intervocálico», quer por «pura desfiguração formal», quer «pela rotura da homogeneidade do seu paradigma», ou mesmo «por ambas as causas combinadas»(12). Sustenta ainda Anguita que, a partir de meados do século X, quando a Galiza, devido ao prestígio da sua capital, Santiago de Compostela, se converteu no foco de irradiação de «novidades culturais», esta terá exportado «para o resto do Reino de Leão, incluindo o extremo oriental castelhano», a tal «inovação linguística», consistente na substituição de velle-*volere por querer, que se deveu aos «incómodos provocados pela perda do -l- intervocálico galego»(14).
Trata-se, no meu entender, de uma hipótese engenhosa e plausível, embora a escassez de documentos não permita ter grandes certezas a este respeito.
(1) C. H. Grandgent: Introduzione allo studio del Latino volgare. Traduzione dall’inglese di N. Maccarrone. Milano: Ulrico Hoepli 1914. 298 p.; p. 217-218.
(2) Poesia e prosa medievais. Selecção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira. Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses. 229 p.; p. 45
(3) Ibidem, p. 47
(4) Cancioneiro d’El-Rei D. Dinis. (Antologia). Prefácio, selecção, notas e glossário de Álvaro J. da Costa Pimpão. Coimbra: Atlântida 1960. 102 p.; p. 47
(5) José Pedro Machado. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Quinto Volume Q-Z. 5.ª edição. Lisboa: Livros Horizonte 1987. 438 p.; p. 16
(6) Old Spanish readings. Selected on the basis of critically edited texts. Edited, with introduction, notes and vocabulary by J. D. M. Ford. Boston, New York, Chicago, London: Ginn and Company 1911. xliii, 309 p.; p. 5
(7) Jean Gautier Dalché: “En Castille pendant la première moitié du XIIe siècle: Les combattants des villes d’entre Duero et Tage”. In: Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l’enseignement supérieur public. 1987, Volume 18, Numéro 18, p. 199-211 ; p. 204
(8) «É na flor da beleza que quero servir de pasto aos tigres.»
(9)Joan Corominas; José Antonio Pascual: Diccionario crítico etimológico castellano e hispánico. Vol. IV: Me-re., Madrid: Gredos 1997. 908 p.; p. 717.
(10) Marco Maggiore. “Note di etimologia romanza a margine dell’articolo */’kur-e-/ (quaerre) del Dictionnaire Etymologique Roman.” Communication sans actes au 10e colloque ”Latin vulgaire - latin tardif”(Bergame, 4-9 septembre 2012).18 p.; p. 6-7
(11)José María Anguita Jaén: “La desaparición de uolo-uelle ‘querer’ y su sustitución por quaero-quaerere ‘buscar’ en gallego, portugués y castellano”. VERBA 2010, vol. 37, p. 331-344; p. 335-336
(12) Ibidem, p. 336
(13) Ao ler a primeira versão deste estudo, o editor do Ciberdúvidas, com toda a propriedade, chamou-me a atenção para o seguinte: «*VOLERE, ao contrário de VELLE, teria [[] simples, facto que o sujeitaria à síncope galego-portuguesa de -L- (o que não acontecia com -LL-; cf. sufixo -ELLU que dá -elo na toponímia e no léxico comum: Cabedelo, cutelo, castelo)».
(14)Ibidem, p. 340-341