DÚVIDAS

«A consumanda vida» (Ricardo Reis)

Quem lê Ricardo Reis sabe da necessidade de se colocarem umas gotitas de óleo no mecanismo da reflexão semântica, antes mesmo de se pôr o motor a carburar! E pode ser que, pelo tubo de escape, lá se expilam quaisquer grãos de chumbo que perdurarão pesados, rolando incessantemente pelo asfalto... Estando eu, portanto, a passar os olhos por uma dessas venerandas ;) odes ricardinas – sem qualquer pretensão de análise linguística, diga-se de passagem –, eis que o sino toca e a igreja se enche, repleta! Transcrevo o excerto que me serviu de inspiração para as posteriores análises:

«Nem vã sperança nem, não menos vã, / Desesperança, Lídia, nos governa / A consumanda vida. // Só spera ou desespera quem conhece / que há-de sperar. Nós, no labento curso / Do ser, só ignoramos. [...]»

Nesta passagem, a latinidade de R. R. vem à tona por meio daquela recusa contundente em não se permitir o "bárbaro" uso da vogal protética e daquele partícipio presente «labento» que escapa aos verbetes de dicionário1. Mas onde a fineza de estilo mais transparece é mesmo no uso do gerundivo «consumanda». Do que me relembro, conjugam-se neste adjectivo verbal (a) quer um valor modal deôntico de obrigação, (b) quer um valor diatético passivo no futuro (será por isso que certos latinistas falam do gerundivo como sendo uma espécie de particípio futuro passivo...). Parece, contudo, que, segundo a interpretação que escolhamos, isso nos levará a cambiantes de sentido diferentes.

Aceitando (a), contraria-se de certa forma o ideal de ataraxia, pois impele-se à acção. Pelo contrário, aceitando (b), o poeta referir-se-ia à «única certeza das nossas vidas» – o seu carácter efémero, aqueles estandartes com que publicita o seu próprio fim. Afinal, como ficamos?

Tudo isto me faz lembrar aquelo verso camoniano «... d'aspeito venerando...». Lendo-o à luz deste novo matiz (i. e. como se tratando da reminiscência de um particípio futuro passivo), parece que o autor quase que prevê que os receios do Velho se vão concretizar (e se não concretizaram?). Certamente que, contrariamente ao que apregoam bafientos dicionários, 'venerando' não poderá ser apenas um sinónimo de 'venerável'. Esquece-se-nos a expressão papal «damnabilis, sed non damnanda»? Sentir-me-ia satisfeito caso se dispusessem a partilhar a vossa visão sobre estes assuntos.

Desde já muitíssimo agradecido.

NOTA: TRADUÇÕES-TIPO

– valor modal deôntico de obrigação: «que deve ser...»

– valor diatético passivo no futuro: «que há-de ser...»

(São parecidas, hein?)

Resposta

Aventava Santo Isidoro de Sevilha, na sua célebre enciclopédia, que o participium («particípio») tinha este nome por chamar a si (capere) partes do nome e do verbo, como se disséssemos particapium.2 Explicava ainda que o particípio vai buscar (vindicat sibi) ao nome os géneros e os casos, ao verbo, os tempos e significados, e a ambos, o número e a figura.3 O argumento etimológico não era novo, pois já Marco Valério Probo, gramático romano bastante anterior, da segunda metade do século I, oriundo de Beirute e contemporâneo do imperador Nero, expressara esta ideia praticamente pelas mesmas palavras.4 Temporalmente quase equidistante dos dois eruditos, acentuava Donato, um influente gramático latino do século IV, a natureza mista (nominal e verbal) do particípio, repetia o argumento etimológico5 e expunha que as formas legendus, legenda, legendum eram participia venientia a verbo passivo temporis futuri («particípios provenientes do verbo passivo no tempo futuro»).6

Hoje diríamos que se trata do gerundivo, ou seja, de um adjetivo verbal, de valor passivo, que se forma pela junção de ‑(e)ndus, ‑a, ‑um ao tema verbal e se declina como qualquer adjetivo da primeira classe, em todos os casos do singular e do plural, concordando sempre em género e número com o respetivo complemento, o qual, por seu lado, concorda com aquele em caso.

Os gramáticos normalmente ensinam que o gerundivo exprime uma ideia de dever, obrigação, necessidade ou conveniência. Deste modo, legendus liber seria um livro que se deve ler ou que é obrigatório, necessário ou conveniente ler. No entanto, uma leitura atenta dos textos mostra que, no decorrer dos séculos, o gerundivo foi ganhando outros matizes e chegou a exprimir conceitos que pouco ou nada tinham a ver com a ideia de dever ou obrigação. Eis alguns exemplos:

(a) Antecedido de advérbio de negação, nomeadamente de vix («mal, dificilmente»), o gerundivo exprimia a ideia de impossibilidade: vix ferendus dolor7 («uma dor praticamente insuportável»); vix erat credendum8 («mal se poderia acreditar»); vix optandum nobis videbatur9 («parecia que dificilmente teríamos hipótese de escolha»); neque hanc consuetudinem victus com illa comparandam10 («nem esta forma de viver se poderia comparar com aquela»); iam illa quæ natura, non litteris, [Romani] assecuti sunt, neque cum Græcia, neque ulla cum gente conferenda11 («o que [os Romanos] conseguiram pela sua índole, não pelas letras, não se pode comparar [ou seja, é incomparavelmente superior] ao que conseguiu a Grécia ou qualquer outra nação»); o impudentiam, nequitiam, libidinem non ferendam!12 («que descaramento, que malvadez, que devassidão insuportável!»).

(b) Nos poetas, bem como em autores mais tardios, o gerundivo podia exprimir a ideia de possibilidade “invadindo” assim o terreno dos adjetivos terminados em –bilis, como se denota neste verso de Ovídio: continua Delphin nocte videndus erit13 («o Golfinho ficará visível durante toda a noite»). Daí que um dicionário inglês-latino publicado em meados do século XIX optasse por traduzir audible por audiendus, auribus percipiendus («audível, percetível aos ouvidos»).14

(c) Por vezes, o gerundivo expressava a finalidade, sem qualquer ideia suplementar de obrigação: Antigonus autem Eumenem mortuum propinquis eius sepeliendum tradiditAntígono, porém, entregou o corpo de Êumenes à família deste, para o sepultarem»);15 idem mihi Munatius eas litteras legendas dedit, quas ipsi miseras («foi o próprio Munácio que me deu a ler as cartas que lhe enviaras»).16

(d) Finalmente, acabou também o gerundivo por suprir a ausência de um particípio futuro passivo “puro”, isto é, isento de qualquer ideia acessória: quies inter labores aut iam exhaustos aut mox exhauriendos renovavit corpora animosque («o repouso que mediou entre os trabalhos já cumpridos e os que iriam em breve cumprir-se restaurou as forças físicas e anímicas»);17 [Hannibal] cum tradendus Romanis esset, venenum bibit («[Aníbal], como ia ser entregue aos romanos, bebeu veneno»).18

Na passagem do latim para o português, o gerundivo acabou por perder a aceção verbal que ostentava na língua do Lácio e legou-nos apenas o seu valor nominal, presente em vários nomes comuns (adenda, agenda, batizando, considerando, dividendo, educando, legenda, memorando, multiplicando, oferenda, prebenda, propaganda, referendo, reverendo, subtraendo, vivenda, etc.) e adjetivos, alguns deles cultos (despiciendo, estupendo, execrando, formidando, horrendo, infando, miserando, nefando, pudendo, tremendo, venerando, etc.), bem como em escassos nomes próprios (Amanda, Miranda, Veneranda). O gerundivo, porém, não deixou de ser produtivo em português, como se prova por uma série de substantivos de caráter verbal que se foram formando internamente, sem pedir permissão à língua mãe: doutorando, diplomando, examinando, explicando, formando, graduando, lecionando. Como se vê, o mundo académico engraçou com o velhinho sufixo e não para de nos surpreender com novos vocábulos...

No caso referido pelo nosso consulente («consumanda vida»), trata-se de um adjetivo com caráter verbal, ou seja, de um gerundivo “puro”, à boa maneira latina. Não se mostra produtivo na nossa língua, mas aos poetas tudo – ou quase tudo – é permitido... Quanto ao sentido que terá pretendido imprimir-lhe o poeta heterónimo, só este o poderia esclarecer cabalmente, se ainda estivesse entre nós. Atendendo, porém, ao facto de a aceção de dever ou obrigação – ou seja, nenhuma das referidas em a), b) e c) – ser a mais frequente e a única que provavelmente aprendia quem então estudava latim sem a necessária profundidade – não consta que Fernando Pessoa fosse latinista –, e conhecendo o que se conhece da vida do insigne poeta, parece-me mais curial interpretar «consumanda vida» como «a vida que é preciso consumar», sem que tal interpretação implique, quanto a mim, nenhum desvio considerável do rumo ataráxico. Tratar‑se‑ia antes de uma atitude eminentemente passiva perante o inexorável desenrolar da existência, própria de quem sente que a vida tem mesmo de ser consumada, quer se queira, quer não, e quer se contribua, ou não, para acelerar ou promover essa consumação inevitável...

Quanto à questão da alegada falta de sinonímia entre venerável e venerando, importa igualmente tecer algumas considerações. Nos dois dicionários de sinónimos portugueses19 que consultei, e que considero fidedignos, não encontrei nenhum verbete que incluísse estes dois adjetivos, pelo que se pode inferir que, segundo os respetivos autores, eles são de facto sinónimos. O único dicionário de sinónimos latinos que pude compulsar20 dedica um verbete ao trio venerabilis, venerabundus, venerandus (p. 349) mas a destrinça que o autor tenta fazer entre o primeiro e o terceiro parece‑me demasiado rebuscada, para além de não se estribar em citações latinas autorizadas. Reza assim: «Venerabilis, venerando, que merece veneração e respeito. [...] Venerandus, venerando, digno de ser respeitado, que merece lhe mostremos a nossa veneração e o nosso respeito com demostrações e actos exteriores.» Em dois dicionários de latim-português,21 que considero fidedignos, e noutro, reputadíssimo, de latim-francês,22 o verbete venerandus remete para venerabilis, sem mais...

Importa não esquecer que o português é uma língua viva, tal como o latim o foi também. Em línguas caldeadas quase instintivamente por inúmeros e díspares falantes ao longo dos séculos, o valor dos prefixos e sufixos não pode obedecer a fórmulas rígidas e imutáveis. Por exemplo, demonstrável é o que é passível de ser demonstrado, mas amável não é o que é passível de ser amado; preferível é o que merece preferência, mas visível não é o que merece ser visto. Só numa língua construída racionalmente, como o esperanto, é que os sufixos e prefixos apresentam sempre o mesmo valor, independentemente da raiz a que se liguem. Só nesta língua, ou noutra composta em idênticos moldes, é que é possível delinear simetricamente uma série como legebla («legível»), legota («que será lido»), leginda («que merece ser lido»), legenda («que tem de ser lido»), análoga a outra como videbla («visível»), vidota («que será visto»), vidinda («que merece ser visto»), videnda («que tem de ser visto»), e assim por diante, com precisão quase matemática, extensível a todas as raízes verbais sem exceção. Em latim e em português, línguas cheias de donaire e louçanias, é verdade, mas também eivadas de irregularidades e incongruências, não existe tal simetria, e é perfeitamente possível que dois vocábulos sufixados de forma díspar – como venerável e venerando – exibam elevado ou mesmo absoluto grau de sinonímia.

Para terminar, um comentário sobre o veredito damnabilis, sed non damnanda, que o papa Pio X terá proferido a 29 de janeiro de 1914, quando foi confrontado com um decreto em que os consultores do Index condenavam várias obras do escritor francês Charles Maurras, principal ideólogo do movimento Action Française. Em primeiro lugar, refira-se que, ao que tudo indica, não existe nenhum documento oficial do punho do papa em que tal fórmula apareça estampada. Foi algo que o papa terá dito, quando decidiu não promulgar o decreto, mas desconheço a existência de qualquer fonte oficial. Aliás, estas alegadas palavras do papa figuram com variantes em fontes, aparentemente bem documentadas, que pude consultar. Deparou-se-me, por exemplo, a variante damnabiles, non damnandi,23 sem adversativa, no masculino plural, eventualmente referente aos ditos libri («livros») proibidos, e a variante damnabilis, non damnandus,24 também sem adversativa, no masculino singular, eventualmente referente ao autor. A variante aduzida pelo consulente, no feminino singular, referir-se-ia eventualmente à própria Action Française. Seja qual for a variante, importa reter que, em todas elas, o gerundivo damnanda/ damnandi/ damnandus é precedido de advérbio negativo, pelo que, de acordo com o que se assinalou anteriormente, aquele adjetivo verbal passa a exprimir uma ideia de impossibilidade. Assim sendo, creio que uma tradução curial da variante apontada pelo consulente poderia ser a seguinte: «[é] condenável [ou seja, merece condenação], mas não se pode condenar». Porque é que, sendo condenável, não se podia condenar, só o papa Pio X o saberia. Talvez o pontífice desejasse apenas adiar a questão. Certo é que morreu poucos meses após este episódio, e a tal condenação só viria a ser promulgada pelo seu sucessor, o papa Pio XI, em 1926...

1 Tem razão o consulente: “labento” não figura nos dicionários, nem poderia figurar, pois trata‑se de forma errónea. De facto, de labens, labentis, particípio presente do verbo labor, laberis, labi, lapsus sum («escorregar, resvalar, deslizar; cair; errar, enganar-se»), só poderia vir “labente” e nunca “labento”. Parece que Ricardo Reis, apesar de ter “estudado” num colégio de jesuítas, já andava um tanto ou quanto esquecido do seu latim... Ou será que alguém não decifrou como deve ser a sua caligrafia?

2 Eis a frase completa: Participium dictum, quod nominis et verbi capiat partes, quasi particapium (Etymologiarum Lib. I, 11). Numa tradução livre, para manter o trocadilho, poderíamos dizer que «O particípio tem este nome por participar da natureza do nome e do verbo, como se fosse partícipe».

3 De acordo com os gramáticos antigos, havia duas figuræ («figuras»): a simplex («simples») e a composita («composta»). Por exemplo, decens («decente») era simples, enquanto indecens («indecente») era composto.

4 Instituta, K. IV, 138.

5 Ars maior, L. Holtz, 644.

6 Ars minor, L. Holtz, 599.

7 Cic. Fin. IV, 19.

8 Cæs. B. G. V, 28.

9 Cic. de Or. I, 21.

10 Cæs. B. G. I, 31.

11 Cic. Tusc. I, 2.

12 Cic. Phil. II, 6, 15.

13 Ov., F., VI, 720.

14 A new abridgment of Ainsworth’s dictionary, English and Latin, for the use of grammar schools. By John Dymock. New American edition with corrections and improvements, by Charles Anthon. Philadelphia: Alexander Towar and Carey, Lea & Blanchard 1836. 405 p.; p. 15.

15 Nep. Eum., 13, 4.

16 Cic. Fam., X, 12.

17 Liv., Urb., XXI, 21.

18 Eutr., IV, 5.

19 J. I. Roquete; José da Fonseca: Dicionário dos sinónimos poético e de epítetos da língua portuguesa. Porto: Lello & Irmãos (1974). 889 p. || Antenor Nascentes: Dicionário de sinônimos. Terceira edição, revista por Olavo Aníbal Nascentes. Rio de janeiro: Nova Fronteira 1981. 485 p.

20 H. Brunswich: Diccionario de synonymos latinos. Revisto pelo Dr. João Manoel Corrêa e Francisco de Faro Oliveira. Porto: A. J. da Silva Teixeira: 1893. 361 p.

21 Dicionário latim-português. 2ª edição. Porto: Porto Editora 2001. 717 p. || F. R. dos Santos Saraiva: Novissimo Diccionario Latino-Portuguez, 9ª edição. Rio de Janeiro; Paris: Garnier (1ª edição: 1881). 1297 p.

22 Félix Gaffiot: Dictionnaire Latin-Français, 9ª edição. Paris: Hachette 2000. xli, 1766 p.

23 Benjamin G. Lockerd et alii:T. S. Eliot and Christian tradition. Maryland: Fairleigh Dickinson University Press 2014. 336 p.; p. 93. Os autores, aliás, traduziram erroneamente a frase latina por damnable, but not condemned («condenáveis, mas não condenados»), ou seja, confundiram o gerundivo damnandi com o particípio perfeito passivo damnati...

24 James Bernauer; Robert Aleksander Maryks: The tragic couple: Encounters between Jews and Jesuits (Studies in the history of Christian traditions). Leiden: Brill 2013. 374 p.; p. 193.

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