Este livro tem a originalidade de a recolha de expressões abranger frases feitas que têm história recente no português de Portugal1. Com efeito, são vários os capítulos que mostram que vivemos num tempo em que a língua dos media, com a cultura do espetáculo, se enraiza igualmente no discurso quotidiano, através de palavras, expressões, frases que noticiários e programas põem em circulação. Por isso, se o título da obra glosa coletivamente a velha e bem conhecida expressão «puxar a brasa à sua sardinha»² é também verdade que regista, explicando-lhes a origem, frases e enunciados como «eu é mais bolos», popularizada pelo humorista Herman José num programa de fim de ano (1991), «isso agora não interessa nada», usada por Teresa Guilherme nas emissões do Big Brother português, ou «e esta, hem?», que o jornalista Fernando Pessa proferia sempre nas suas reportagens para a RTP. Trata-se, pois, de uma obra que reflete bem as preocupações inerentes à profissão da autora, a jornalista Andreia Vale, procurando os acontecimentos que motivaram giros linguísticos como «até vir a mulher da fava rica»². Constituindo um excelente instrumento de consulta, é sobretudo um conjunto de apontamentos muito atento ao contexto de cada expressão, a que se juntam curiosidades da história de Portugal remota ou recente, num estilo vivo e bem-disposto. Em sequência ou saltando páginas, os mais de 200 artigos de Puxar a Brasa à nossa Sardinha são uma leitura agradável e divertida, restituindo ao discurso do dia a dia a memória sociocultural do nosso idioma.
1 Observe-se que o livro entronca, como evidencia a secção referente à bibliografia consultada, numa extensa série de obras dedicadas às expressões idiomáticas e frases feitas utilizadas em Portugal. Recordemos alguns títulos e os seus autores: Nas Bocas do Mundo: Uma Viagem pela História das Expressões Portuguesas (2010 e reedição em 2014), de Sérgio Luís Carvalho; Dicionário das Origens das Frases Feitas (1992) e Dicionário das Expressões Correntes (2000), de Orlando Neves; Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas: Português (1990), de António Nogueira Santos; Dicionário de Expressões Populares Portuguesas (1985), de Guilherme Augusto Simões. No Brasil, são numerosas as obras dedicadas à história de palavras e expressões, entre as quais se salientam:
— A Casa da Mãe Joana, de Reinaldo Pimenta (Editora Campus, Rio de Janeiro);
— A Vida Íntima das Palavras – Origem e Curiosidades da Língua Portuguesa, de Deonísio Silva;
— Dicionário de Expressões Populares;
— Dicionário de Expressões Populares da Língua Portuguesa;
— Dicionário de Termos e Expressões Populares;
— Expressões Populares, Origem e Significado;
— Tesouro da Fraseologia Brasileira, de Antenor Nascentes.
² «Até vir a mulher da favar rica: Olha a fava riiiiiiiiica!" foi dos últimos pregões a ouvir-se em Lisboa, já o século XX tinha começado. Estas frases gritadas, com que os vendedores ambulantes anunciavam os seus produtos, soavam nas ruas da capital logo às primeiras horas da manhã. As mulheres que apregoavam a fava rica percorriam alguns dos bairros mais populares da cidade, como a Graça ou a Madragoa, de panela à cabeça, e o pregão servia para anunciar a sopa quente de fava que vendiam para confortar os estômagos de quem se levantava cedo para ir trabalhar. Ou de quem estava a chegar a casa depois de uma noite de trabalho. A sopa era tão boa que havia mesmo quem não se importasse de esperar - às vezes muito - que chegasse a mulher da fava-rica. Consta que valia a pena!
Os ingredientes da receita incluíam fava seca, demolhada durante longas horas, cozida e depois refogada com azeite e alhos. Da história do pregão só resta mesmo a memória e a expressão.»
³ «Fazer uma vaquinha. A expressão existe em espanhol ("arrimar el ascua a su sardina"). Pensa-se que a origem da expressão é antiga e é atribuída às sardinhas que os trabalhadores nos cortiços (pequenas casas habitadas por muitas pessoas) comiam. Para assarem essas sardinhas, recorriam às brasas dos candeeiros que serviam de iluminação doméstica. Retirar (puxar) as brasas para assar as sardinhas apagava essas fontes de luz nas casas.
Desde os primeiros tempos da monarquia portuguesa que há registos e referências à pesca da sardinha e de como este peixe fazia parte da alimentação da população pobre de Lisboa, mais do que a comida fresca, salgada ou defumada. Existiam lugares de frigideiro, uns poisos ambulantes onde, à hora das refeições, se assavam sardinhas e é de imaginar que também aqui cada um tentava puxar a brasa à sua sardinha.»
4 «Obras de Engrácia. A história do templo de Santa Engrácia, perto do Campo de Santa Clara - mais conhecido hoje em dia como o Panteão Nacional -, começa no século xvi, com a infanta D. Maria. Filha do rei D. Manuel e da sua terceira esposa, D. Leonor, chegou a ser a mulher mais rica de Portugal no seu tempo. A sua instrução e virtudes ganharam fama, teve muitos pretendentes, mas morreu solteira, sem deixar filhos. Dedicou a vida à Igreja, fundou vários conventos e, entre as várias obras que patrocinou, estava a Igreja de Santa Engrácia, que mandou construir em 1568.
O problema foi que se seguiram 300 anos de peripécias... Uma tempestade praticamente destruiu o edifício em 1681 e, nos séculos seguintes, houve várias alterações de planos. Desde falta de dinheiro à falta de interesse ou de mão-de-obra, houve tudo e mais um par de botas para justificar a demora nas obras... Ainda inacabada, a Igreja de Santa Engrácia passou a ter estatuto de monumento nacional em 1910, e em 1916 tornou-se o Panteão Nacional. A obra só se completou por ordem de Salazar, quase 300 anos depois, em 1966.
Só isto justifica a expressão, mas existe uma outra versão, mais romântica.
No primeiro mês do ano de 1630, um cristão-novo de nome Simão Pires Solis é acusado de profanar o templo e de roubar as hóstias do relicário da capela-mor. Reza a lenda que o homem tinha sido visto a rondar a igreja na noite do assalto, montado num cavalo que tinha os cascos embrulhados em panos, para que não fizessem barulho. Simão Solis jura inocência, mas acaba por ser queimado vivo no Campo de Santa Clara. Na hora da morte, lança uma maldição à igreja ainda em construção, clamando: "É tão certo morrer inocente como as obras nunca mais acabarem." Mais tarde, descobriu-se a verdadeira razão da presença de Solis perto da igreja naquela noite: o rapaz afinal apenas esperava por Violante, filha de um fidalgo e noviça no Convento de Santa Clara? Apaixonados, teriam fugido...»
Este é um espaço de esclarecimento, informação, debate e promoção da língua portuguesa, numa perspetiva de afirmação dos valores culturais dos oito países de língua oficial portuguesa, fundado em 1997. Na diversidade de todos, o mesmo mar por onde navegamos e nos reconhecemos.
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