« (...) O rotacismo marca diferenças sociolinguísticas que não são bem aceitas em vários contextos – o universitário é um deles. (...)»
Lembro-me de minha aluna que, há muitos anos, deu, na universidade, uma aula inteira de Botânica falando pranta em vez de planta. Aula impecável, didática, concisa; a fala era desenvolta e bem-humorada, com voz agradável e firme; os desenhos no quadro-negro eram lindos. Tudo saía bem, exceto pela pranta que era carregada de fror. Os demais alunos que a assistiam riam baixinho e a brilhante aula foi ofuscada pela troca duma simples letra.
Essa alteração do R pelo L é um fenômeno fonológico conhecido pelos linguistas como "rotacismo do L". Rotacismo vem do grego antigo rhotakizein, que significa «usar demais a letra rô». Rô (ρ) é a décima sétima letra do alfabeto grego, corresponde ao erre latino (o nosso r). Então, é o mesmo que «usar demais a letra erre».
O rotacismo é um fenômeno fonológico característico do dialeto caipira, em que é comum encontrarmos quem fale chicrete, Cráudia, grobo, crasse, frauta, brusa. Trata-se de um dialeto que abrange a região conhecida como Paulistânia, isto é, a que abrange os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul e parte de Mato Grosso, Minas Gerais, Goiás e Paraná – todos com influência cultural do modo de falar do interior de São Paulo.
No entanto, o rotacismo não é exclusivo desses estados nem do dialeto caipira. Ele aparece com frequência também nas regiões Norte, Sul e no Nordeste. Na canção “Assum preto” (1950), Luís Gonzaga já cantava logo no comecinho: «Tudo em vorta é só beleza/ Sol de abril e a mata em frô».
Aliás, a troca do L pelo R não é coisa só do Brasil nem só de nossa língua. É um fenômeno bastante comum e antigo, mostrando-nos que essas trocas não são desregradas, mas seguem a tendência natural da língua.
Mesmo na evolução do latim vulgar para o português, o rotacismo estava lá fabricando várias palavras que nos são hoje triviais. Foi assim que o latim blancus passou a branco; flaccus → fraco; obligare → obrigar; plica → prega; clavus → cravo; sclavus → escravo; duplus → dobro.
O grande poeta português Luís de Camões, no século XVI, por exemplo, usava rotacismos pra caramba. Em Os lusíadas (1572), encontramos o verso «Doenças, frechas, e trovões ardentes». Camões ainda mandou palavras como Ingrês, pruma, pubrica, frauta e pranta.
Está no DNA da língua portuguesa. O rotacismo sempre nos acompanhou de uma maneira bastante intrínseca. Isso acontece porque os sons do /r/ vibrante e /l/ estão muito próximos do ponto de vista articulatório, pois ambos são produzidos com a ponta da língua tocando os alvéolos dentais (as cavidades onde os dentes estão inseridos).
Como parte dum dialeto, o rotacismo é apenas uma das inúmeras variações fonológicas que compõem a língua portuguesa. Ele nunca foi um problema para os seus falantes. Pelo contrário, onde todos falam pranta, aquele que disser planta certamente será ouvido com estranhamento; ele que é o “errado”.
Mas o rotacismo marca diferenças sociolinguísticas que não são bem aceitas em vários contextos – o universitário é um deles. Minha aluna me agradeceu quando a adverti sobre a pronúncia de pranta e fror no ambiente acadêmico, o que tratou de corrigir, mas sabiamente me comunicou tempos depois: «Aqui na universidade, só falo planta agora. Valeu pelo toque, professor, mas lá na minha cidade, com meus amigos e minha família, não tem jeito, a gente fala é pranta!”. E ela está certíssima, craro!
Referências: ‘“Vamos prantar frores no grobo da Terra”: estudando o rotacismo nas series iniciais da rede municipal de Ensino de Moita Bonita/SE, por Raquel Meister Ko Freitag & al., na Revista virtual de Letras (dez. 2010).
Imagem: "Caipira picando fumo", de Almeida Júnior (1893).
Texto publicado na página de Facebook Nomes Científicos no dia 29 de março de 2023.