«Nunca me tinha apercebido de que a forma de falar de Coimbra era, em Lisboa, quase um sotaque», declara o professor universitário português Luís Campos e Cunha num texto à volta de como origens, percursos de vida e níveis etários deixam marcas lexicais e fonéticas no discurso dos falantes, criando muitas vezes barreiras sociais.
Confesso a minha ignorância. Até muito tarde na vida, nunca me tinha apercebido de que a forma de falar de Coimbra era, em Lisboa, quase um sotaque. Como a minha família era nada e criada em Coimbra eu falava coimbrão, algo bem distinto do alfacinha.
Uma história em coimbrão poderia ser assim: «Um velho abriu a porta para trazer o jacó e uns rapelhos saídos de uma quelha começaram na caçoada. Ó velho tens um casaco ledido e sem um garruço ainda te constipas. De dentro da casa, a mulher perguntou-lhe: quem são eles? Canalha, respondeu o velho. Dá-lhes com esta sertã ou anda para dentro e cerra a porta.»
Em alfacinha a mesma história seria: «Um velho abriu a porta para trazer o caixote do lixo e uns miúdos saídos de uma ruela começaram a fazer troça. Ó velho tens um casaco coçado e sem um gorro ainda te constipas. De dentro da casa, a mulher perguntou-lhe: quem são eles? Miudagem, respondeu o velho. Dá-lhes com esta frigideira ou anda para dentro e fecha a porta.»
Só me apercebi que em Lisboa ninguém «enfiava o garruço» mas, quando muito o barrete, no momento em que quis comprar uma gabardina sem garruço. Foi há bem poucos anos que tomei consciência de tal pela cara de espanto da vendedora (que nem era brasileira) e que olhou para mim como se eu tivesse vindo de Marte quando apenas tinha vindo de Coimbra (e nem fui eu, mas sim os meus pais).
Tudo isto me separou de colegas de faculdade, sem eu nunca ter consciência. Aqui e acolá ia-me apercebendo de que certas palavras lhes eram estranhas, não mais do que isso. Mais importante e mais imperceptível para mim era a minha pronúncia coimbrã de certas palavras e sinceramente ainda não entendo a razão da pronúncia alfacinha. Em coimbrão "coelho" pronuncia-se "coêlho" — à antiga portuguesa — e nunca "coãlho", como em Lisboa. Mais estranho ainda é "espelho", que sempre pronunciei "espêlho" e em alfacinha será "espãlho". E a estranheza vem do facto do verbo "espelhar" — derivado de "espelho" — se pronunciar da mesma maneira em Coimbra e Lisboa; e nunca se confunde com "espalhar", que deveria ser a regra em Lisboa, mas não é.1
As nuances linguísticas são muito traiçoeiras porque raramente estão escritas e servem para distinguir também as pessoas por classes. Nenhuma pessoa educada pode dizer "esposa", mas sempre "mulher"; ou então "xícara" e nunca "chávena"; ou ainda "encarnado" e nunca "vermelho". Parece-me que esta é mais recente e deve ter conotações políticas. Mas ninguém diz "Cruz Encarnada" quando quer dizer "Cruz Vermelha". Ninguém diria: "queimei a palma da mão e fiquei com um encarnadão", em vez de "vermelhão" só por ser mais fino. Aliás "fino" é piroso, desculpem, possidónio. Uma mala de senhora é, obviamente, uma carteira, que ainda por cima não se distingue da dos bancos da escola. Ninguém deve dizer "funeral", mas "enterro", mesmo que não haja enterro porque a pessoa em causa vai ser cremada.
De qualquer forma, estas palavras proibidas, que nada têm a ver com as regras do bom português, são formas de discriminação subtil e não estão escritas em nenhum compêndio da língua. São distinções de classe passadas de pais para filhos. E são as mais traiçoeiras e fruto de uma sociedade pouco aberta à mobilidade social. O sorriso interior que provoca quando nos apresentam a esposa!
Há outras que são fruto das gerações e têm modas. Nunca, mas nunca, nos meus tempos de universidade diríamos de nós próprios: sou um jovem. Era foleiro, piroso ou possidónio até dizer chega. Hoje os jovens chamam-se a si próprios de jovens. Impensável.
Outras expressões são igualmente marcadas pela sua novidade e que são propriedade exclusiva dos jovens: o bué de Angola, ou o bacano do Brasil ou beca que virá de algures. Aqui não é uma distinção de classe, mas tão só de idade ou de geração -são expressões proibidas a cotas (mais uma). Estas até têm graça. E infelizmente já me fica mal dizer "bué".
Do outro lado da idade, sempre me lembro de ouvir as pessoas simples da minha aldeia queixarem-se dos seus giolhos, em lugar de joelhos. Sempre pensei que fosse mau português: ignorância minha. Giolho é apenas vicentino mas nunca verdadeiramente incorrecto.
Tudo isto tem pouco a ver com a pronúncia do Alentejo ou do Porto, bem aceites como tal. Ao que eu me refiro é à proibição de palavras, perfeitamente correctas na língua portuguesa, mas que distinguem e discriminam pessoas por idades ou origem social. A pronuncia alentejana apenas significa que se nasceu em Évora ou Beja, mas nada mais. Apenas está em causa a origem geográfica e não subjaz nenhuma forma de discriminação surda e apenas entendida pelos iniciados. As palavras proibidas são um sinal secreto de ser parte do grupo ou de uma classe. As palavras proibidas são formas de distinção de classe tão fortes quanto a propriedade dos meios de produção e menos evidentes porque só um dos lados tem consciência delas.
1 N. R. : Na representação da pronúncia, o til sugere que a vogal tónica de coelho e espelho é nasal. Não é disso que se trata, porque vogal é oral (vogal oral central média baixa, cf. António Emiliano, Fonética do Português Europeu: Descrição e Transcrição, Lisboa, Guimarães Editores, 2009, pág. 156): a pronúncia em causa pode, portanto, representar-se como "coâlho" e "espâlho", caso não se queira ou não se possa recorrer a transcrição fonética — [kwɐʎu] e [ʃpɐʎu], respectivamente. Cabe ainda dizer que na pronúncia lisboeta, espelhar não se confunde com espalhar, porque a sílaba "pe" passa a átona, o que significa que a vogal fica sujeita à regra de elevação e recuo do vocalismo átono, também aplicável aos outros dialectos do português europeu.
jornal Público, 12/11/2010