« (...) Portugal é uma república e por isso foi abolido tudo o que tem que ver com a monarquia, incluindo os títulos da nobreza. Só pode ser considerada ‘família real’ se forem reis de alguma coisa e eles não são reis de nada. (...)»
Um colega do Público chamou-me a atenção: «Já viste que por todo o lado se lê ‘casamento real’?» Fui ver e ele tinha razão.
Numa ronda rápida pelos jornais, li sobre a «boda real», a «cerimónia do casamento real», o «primeiro casamento real em Portugal em três décadas», «um dos responsáveis pelo protocolo no casamento real», a «costureira da família real», «os melhores chapéus do casamento real», os «membros da aristocracia nacional», a «aristocracia portuguesa», a «Família Real Portuguesa» (em maiúsculas) e a «família real portuguesa» (em minúsculas).
Isto para além de ler sobre «Dom» Duarte Pio, o «duque» de Bragança, «Dom Duarte», «Isabel de Herédia, duquesa de Bragança», a «infanta» Maria Francisca, a «infanta de Bragança» e o «duque do Porto».
Com mais tempo, teria talvez encontrado referências ao «príncipe da Beira», ao «duque de Barcelos, ao «duque de Guimarães» e à «duquesa de Coimbra».
Por onde começar? Talvez pelo dicionário.
No sábado [7/10/2023], em Mafra, casaram Francisca de Bragança e Duarte Martins. A noiva é filha de Duarte Pio, descendente da família real portuguesa do tempo da monarquia e pretendente ao trono. Mas Francisca não é infanta.
«Infanta», todos sabemos e diz o dicionário, é «esposa do infante», «filha de rei português ou espanhol, mas não herdeira do trono». Do mesmo modo, «infante» é «qualquer filho do rei». O que evidencia o problema: Portugal não tem um rei. É uma república. Se não há rei, não há infanta. Rei, já agora, significa «soberano de um reino, monarca» e, em sentido figurativo, «o mais notável entre outros». E Duarte Pio, também todos sabemos, não é nem uma coisa, nem outra.
A Constituição Portuguesa de 1911, aprovada após a queda da monarquia e a instauração da república, diz (artigo 3, 3.º parágrafo) que «a República Portuguesa extingue os títulos nobiliárquicos».
A seguir, já no Estado Novo, a Constituição de 1933, conhecida como «a Constituição de Salazar», diz (artigo 74.º) que «são inelegíveis para o cargo de Presidente da República os parentes até ao sexto grau dos reis de Portugal». E a actual Constituição, da nossa república democrática, já nem fala disso. A palavra «real» só aparece para falar da «igualdade real entre os portugueses».
Até percebo que se chame «Dom» a Duarte Pio, para facilitar, mas é uma questão de pura cortesia. Como dizemos «Dom» quando falamos dos bispos – embora baste muito bem «bispo». Mas não há «aristocracia portuguesa».
«Falar em 'família real' é errado por uma questão conceptual», diz Margarita Correia, professora auxiliar de Linguística na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a quem pedi ajuda. «Portugal é uma república e por isso foi abolido tudo o que tem que ver com a monarquia, incluindo os títulos da nobreza.»
Em menos palavras: «Só pode ser considerada ‘família real’ se forem reis de alguma coisa e eles não são reis de nada.»
O site oficial da família de Duarte Pio chama-se, sem surpresa, Casa Real Portuguesa. É pacífico. É o nome que eles dão a si próprios. O título, as maiúsculas e tudo o resto está dentro da sua liberdade de expressão.
Mas é interessante notar como escrevem, abaixo da fotografia de Duarte Pio e Isabel de Herédia (fotografada com uma coroa na cabeça): «Dom Duarte Pio foi afilhado e herdeiro patrimonial da Rainha Dona Amélia (mãe de Dom Manuel II) e hoje é o Chefe da Casa Real Portuguesa.»
Duarte Pio João Miguel Gabriel Rafael de Bragança tem nome de príncipe mas sabe bem que não é sequer seguro que, se Portugal passasse amanhã a ser uma monarquia, seria ele o rei. Não só há contestação razoável sobre ser ele o «chefe», como o mais provável é que fosse o Parlamento a escolher de entre os pretendentes – foi assim algumas vezes na nossa História.
Discutir hoje quem seria o legítimo herdeiro do trono de Portugal é como discutir «quem seria hoje o imperador romano». A imagem é de um professor de Direito Constitucional a quem liguei também a pedir ajuda. «São livres de fazerem clubes e são pretendentes ao trono, mas é um exercício abstruso.»
Já para as televisões e jornais que quiseram contar uma história de crianças foi ouro sobre azul.
Artigo da jornalista portuguesa Bárbara Reis, transcrito, com devida vénia do diário português Público. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.