Comunicação apresentada pela professora Isabel Casanova (Universidade Católica Portuguesa), na mesa-redonda Portugal no mundo – A língua portuguesa e os seus embaixadores, que, promovida pela Universidade Europeia, decorreu em Lisboa, a 13 de maio de 2015.
A língua portuguesa fez já 800 anos. Mas, para sermos honestos, ninguém sabe quando nasceu a língua portuguesa. Portanto não se sabe se tem realmente 800 anos. Ninguém sabe quando nasce uma língua, apenas se sabe quando uma língua morre. Considera-se morta uma língua que já só tem um falante. Mas quando nasce, ninguém sabe. Portanto, ninguém pode de facto saber quantos anos festeja uma língua. Se não sabemos quando alguém nasceu, também não poderemos saber quantos anos tem. Parece evidente.
É que uma língua não nasce; uma língua vai nascendo: em determinado momento é indiscutivelmente latim, noutro é indiscutivelmente português. No intervalo há, porém, uma massa falante que se vai tornando cada vez menos latim e cada vez mais português. Portanto, não há um momento em que uma língua nasce.
Chamo a atenção para o facto de que nem a data do nascimento da nação portuguesa é pacífica: 1128 (batalha de S. Mamede), 1143 (Tratado de Zamora) ou 1171 (data da bula Manifestis probatum em que o papa Alexandre III reconhece D. Afonso Henriques como primeiro rei de Portugal. Alguns autores apontam também a data de 1140, data – muito incerta e não rigorosamente estabelecida – da batalha de Ourique em que D. Afonso Henriques se autoproclamou Rei de Portugal ou terá sido aclamado pelas suas tropas ainda no campo de batalha.
Ora, se não se sabe quando nasceu a nação portuguesa, não deveríamos estranhar a dificuldade em determinar quando nasceu a língua portuguesa. Não se sabe então quando nasceu a língua portuguesa? Não. Tem-se apontado o testamento de D. Afonso II como o primeiro documento oficial em língua portuguesa, considerando-se o galaico-português ou galego-portucalense a língua até então falada. Sabemos com rigor que o testamento do rei D. Afonso II data de 27 de julho de 1214. Então a língua portuguesa terá feito 800 anos em 2014, no passado mês de julho.
Esta data é, porém, meramente orientadora. É uma data artificial, uma data de trabalho, é um marcador histórico.
Conscientes desta festividade – os 800 anos da língua portuguesa – data de alguma forma insegura e artificial, conhecemos dois documentos importantes desta época: o já referido testamento do nosso rei D. Afonso II [23 abril 1185-25 março 1223] e a Notícia de torto, documento que data de 1214-1216. Trata-se de um documento particular, escrito em português, em que D. Lourenço Fernandes da Cunha, tendo sido vítima, durante anos, de violências, roubos e vexames por parte dos filhos de Gonçalo Ramires e de outras pessoas, fez um minucioso relatório de tudo, que ficou a ser conhecido pelas três primeiras palavras do texto: Noticia de torto, ou seja, Notícia das malfeitorias que lhe fizeram.
São estes dois documentos que têm sido considerados os mais antigos escritos na nossa língua. São estas as balizas históricas tradicionais da nossa língua. No entanto, o acervo histórico da Torre do Tombo está, quanto a este período, ainda muito inexplorado.
Insisto, porém, que se trata de balizas artificiais. Posteriores a estes documentos, o mais antigo que se conhecia era um documento da chancelaria de D. Afonso III (1255). Os investigadores estranharam este tão grande lapso de tempo – de 1214 a 1255 – e decidiram investigar se haveria outros documentos dentro deste período de mais de 40 anos. E como muitas vezes sucede em investigação, descobriram, não só oito documentos desse período, portanto posteriores a 1214, mas também um documento – Notícia de fiadores ou Notícia de dívidas — datado de 1175.
Por ora é este considerado o documento mais antigo em língua portuguesa. É um documento em que Paio Romeu faz uma lista das suas dívidas - por isso se chamar também de Notícia de dívidas – e dos seus fiadores. Trata-se de um documento não literário de caráter notarial. Paio Romeu declara as suas dívidas e a lista dos seus credores. Conto isto para vos mostrar que a datação histórica de o primeiro ou o mais antigo é [sempre] provisória. Determinado documento é o mais antigo até se descobrir outro eventualmente anterior. Afinal a língua portuguesa parece ter já 840 anos.
Esta dificuldade compreende-se. Em primeiro lugar, os escritos eram raros naquela época. Não, ninguém deixava recados em casa presos com íman ao frigorífico: a população era analfabeta. Culto era o clero, mas esse escrevia em latim. Além disso, muitos documentos importantes se perderam certamente com o tempo.
Apenas se conheciam dois tipos de documentos não literários: documentos régios e documentos privativos geralmente de natureza notarial. E assim são os documentos mais antigos que hoje se conhecem: o testamento de D. Afonso II, a Notícia de fiadores e a Notícia de torto, documentos de incomparável importância para a história da língua e da escrita portuguesas. A Notícia de torto foi durante muito tempo considerada o primeiro documento particular escrito em português, apresentando uma escrita arcaica muito próxima ainda da tradição latina-portuguesa. Conhece-se agora, também, uma notícia, das dívidas de Paio Romeu aqui transcrita em português atual:
Notícia que fez Paio Romeu de seus fiadores: Estêvão Paio, vinte soldos; Leitão, vinte soldos; Pais Garcia, vinte soldos; Gonçalves Mendes, vinte soldos; Egas Henriques, trinta soldos; Pedro Colaço, dez soldos; Gonçalves Henriques, quarenta soldos; Egas Moniz, trinta soldos; João Soares, trinta soldos; Mendes Correia, trinta soldos; Pedro Soares, trinta soldos. […] Estes fiadores dentro de cinco anos exigirão o que lhes devo.
Este texto é bem representativo de uma escrita ainda primitiva. O mais natural seria pensar-se que a escrita nasceu da necessidade de o ser humano comunicar, exprimir pensamentos, revelar sentimentos... Nada disso. As pessoas comunicavam oralmente, anunciavam oralmente e organizavam-se oralmente. Não se sabe quando nem onde nasceu a fala. Não se sabe qual foi a primeira língua e, embora João de Barros tenha dito que descobrir a primeira língua é tão impossível como descobrir a nascente do rio Nilo, a verdade é que se conhece já onde nasce o Nilo, mas não se sabe ainda onde nem como nasceu a linguagem.
Parece saber-se, porém, como, onde e para que nasceu a escrita. Ter-se-á, evidentemente, desenvolvido ao longo dos tempos, mas crê-se que foi no Médio Oriente, mais precisamente na Mesopotâmia, terra [literalmente] entre dois rios, o Tigre e o Eufrates, que teve início um sistema organizado de sinais e símbolos que ultrapassava o mero registo de sinais e imagens. É este sistema organizado que vai permitir aos Homens registar os números, as contas, os inventários tão difíceis de memorizar.
Nascida cerca de 4 milénios a.C., a escrita nasceu fundamentalmente com uma função de registo. Um texto parecia ser mais fácil de memorizar do que um inventário. Crê-se hoje que os primeiros registos escritos não terão sido de textos, mas de números: sacas de cereais, cabeças de gado, pagamentos, dívidas, número de escravos, de padeiros, etc.
É de certa forma o objetivo destes primeiros textos: Paio Romeu enumera os seus fiadores, D. Lourenço Fernandes da Cunha enumera as violências, roubos e vexames a que foi sujeito por parte dos filhos de Gonçalo Ramires e D. Afonso II enumera as suas últimas vontades:
En’o nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e saluo, temẽte o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia molier raina dona Orraca e de me(us) filios e de me(us) uassalos e de todo meu reino fiz mia mãda p(er) q(ue) depos mia morte mia molier e me(us) filios e meu reino e me(us) uassalos e todas aq(ue)las cousas q(ue) De(us) mi deu en poder sten en paz e en folgãcia. P(ri)meiram(en)te mãdo q(ue) meu filio infante don Sancho q(ue) ei da raina dona Orraca agia meu reino enteg(ra)m(en)te e en paz.
Mas então estamos a falar da antiguidade da língua portuguesa? Sim e não. Estamos a falar da antiguidade da língua portuguesa escrita. O registo escrito de uma língua é sempre posterior à sua versão falada, como facilmente se compreende. Se é verdade que a tradição de um registo escrito é sempre posterior à fala, sabemos também que os primeiros escritos não seguiam uma lógica coerente e uniformizada. A representação gráfica ficava muito ao sabor do escriba e só tardiamente se começou a sentir a necessidade de uniformizar a escrita.
Não existiam dicionários de português. Dicionários bilingues sim: latim português / português latim, grego / português etc. O primeiro dicionário monolingue de português nasce apenas no século XVIII. Dúvidas ortográficas e semânticas resolviam-se de acordo com a tradição dos diferentes mosteiros e diferentes escribas.
O primeiro dicionário monolingue português é de Bernardo de Lima e Melo Bacellar, prior do Alentejo, e data de 1783. Como eu disse há pouco, o clero constituía a população culta, mas o clero estudava e ensinava latim, grego e hebraico. E assim se compreende que o português não fosse ensinado, a escrita portuguesa não fosse ensinada e os dicionários fossem todos bilingues. Dicionários sim, mas bilingues. Fazer um dicionário a ensinar palavras portuguesas aos portugueses? Tal nunca tinha passado pela cabeça de ninguém.
Até à Idade Média, o ensino do latim conheceria a prática das glosas interlineares em latim no seio do próprio texto, dando mais tarde origem às glosas interlineares estrangeiras sobre os textos latinos. Fazia-se o que todos nós fizemos quando estudámos línguas estrangeiras: escrevia-se por cima das palavras difíceis o correspondente na língua materna. Essas glosas, destinadas em primeiro lugar a facilitar a descodificação e compreensão dos textos latinos, irão, a pouco e pouco, dando forma a tábuas ou glossários bilingues, destinados a permitir uma aprendizagem mais fluida de línguas estrangeiras. As línguas estudadas eram sobretudo o latim e, em menor escala, o francês. O português não se estudava. Português era o que se falava e ninguém precisava de o aprender.
Certo é que, com o primeiro volume do dicionário da Academia Real das Sciencias de Lisboa [1793], pela primeira vez na história dos dicionários portugueses, vem à estampa uma obra que esquematiza toda a problemática envolvida: a questão dos nomes próprios e seus derivados, a abertura – que se quer de grande prudência – aos estrangeirismos, o recurso às autoridades, a questão ortográfica e a problemática do seu acompanhamento (ou não) da evolução fonética da língua, a formação de novas palavras, quer por composição, quer por derivação, a etimologia, a natureza das explicações e, pela primeira vez também, se questionam as entradas e a ordem das subentradas.
Só em 1911 viria Portugal preocupar-se com uma uniformização prescritiva da ortografia. Conhece depois uma globalização ortográfica com o Brasil em 1945, acordo que o Brasil assinou, mas decidiu não cumprir, e novamente em 1990 com um Brasil que se está a preparar para o alterar, para ir mais longe.
Estudar a língua, a sua história, regras, ortografia, enfim a sua vida, parece ser neste momento o que mais importa. A língua é um organismo vivo. Na linha do poeta Horácio, podemos comparar a língua a uma planta que, com o passar do tempo, vai perdendo umas folhas e vendo nascer outras.
BIBLIOGRAFIA
CASANOVA, Isabel (2006) – A língua no fio da navalha: ensaio para um dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Universidade Católica Editora.
CASTRO, Ivo; MARQUILHAS, Rita; ACOSTA, J. Léon (1991) – Curso de história de língua portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta.
MARTINS, Ana Maria (2001) – «Emergência e generalização do Português escrito. De D. Afonso Henriques a D. Dinis». In Caminhos do Português. Coord. de Maria Helena Mira Mateus. Lisboa: Biblioteca Nacional.
Agradecemos ao consultor Paulo J. S. Barata a sua intervenção, que permitiu disponibilizar aqui este texto.