«(...) Os antigos gregos chamavam de idiótes aquele cidadão que não se interessava pelas discussões públicas, do Estado, que se apartava da vida política do lugar. (...)»
«Não está no gibi» é um idiotismo. Você já conhecia essa expressão? E o termo idiotismo? Explico-lhe as duas.
Entre as décadas de 60 e 70, popularizou-se a expressão «não está no gibi» para se dizer que algo é inacreditável, fantástico, impossível de ser imaginado. Os gibis – forma como os brasileiros genericamente se referem às histórias em quadrinhos (HQs) – são conhecidos por apresentarem ficções para lá de fantasiosas, especialmente as de super-heróis. Então, se um causo não está sequer nos gibis, ele é algo muito fora do comum, extraordinário.
Não faz muito sentido traduzirmos noutras línguas essa expressão ao pé da letra. Em inglês ficaria «that isn’t in a comic book» e o estrangeiro não entenderia seu real significado. Soltaria um «and so?...» e ficaria com cara de tacho. «Ao pé da letra», «cara de tacho» e «não está no gibi» são idiotismos, isto é, são locuções próprias duma língua, cuja tradução literal não faz sentido noutros idiomas.
Como idiotismo lembra muito a palavra idiota, muitos linguistas preferem usar o termo idiomatismo. Idiotismo, idiota e idioma são palavras com mesma origem etimológica, são cognatas. Elas compartilham do mesmo ancestral. São tataranetas do grego antigo ídios, que significa «próprio, particular, peculiar».
Idiotismo vem de idiotismós, que significa «linguagem particular, corrente de um povo». Era o modo de falar da plebe, do povão. Também significava «dito popular» ou «expressões idiomáticas».
Veja como tudo que começa com idio- é algo voltado para si, para a sua particularidade. Idioma vem de idíoma, a língua própria de um lugar. Idiossincrasia, de idiosugkrasía, é a característica comportamental própria de um grupo ou um indivíduo. É o que a gente chama «o meu jeito de ser». Idiólatra é um sujeito que adora a si mesmo, um narcisista.
Nessa linha de raciocínio, da particularidade, os antigos gregos chamavam de idiótes aquele cidadão que não se interessava pelas discussões públicas, do Estado, que se apartava da vida política do lugar. O idiótes era um alienado das decisões políticas, um plebeu que vivia sem participação efetiva na sociedade.
Na Antiguidade, ser um idiótes não era algo tão pesado. Nada mais era que o cidadão simplório. Como a grande parte da população era composta por gente sem instrução, o termo chegou ao latim como idiota, no sentido de «ignorante, sem conhecimento».
Com o tempo, o conceito de idiota evoluiu de «sujeito simples» para «sujeito estúpido» e, depois, para «sujeito extremamente estúpido». Em português, o lexicógrafo português Raphael Bluteau definia idiota, em 1728, de um jeito muito peculiar: «aquele que não sabe contar até vinte, não sabe os nomes de seus pais, nem que idade tem, etc.»
Indo nesse sentido, dalguém sem intelecto, o médico francês Philippe Pinel trouxe o termo para a Psiquiatria. (Detalhe: é de seu sobrenome que vem a palavra pinel significando «indivíduo louco».) Pinel chamou de idiotismo o que considerava ser uma «alienação mental», um «distúrbio das funções intelectuais». Seu aluno, Étienne Esquirol substituiu, depois, idiotismo por idiotia.
Hoje, o termo médico usado é «deficiência intelectual» ou oligofrenia. A palavra idiota ficou mais como um xingamento, para se referir ao ser imbecil, tolo, babaca, bocó, néscio, paspalho, zé-ruela, tonto, pateta, tapado, boboca, jerico, palerma, abestalhado, sonso, bobalhão, toupeira, energúmeno.
Texto da autoria do professor universitário brasileiro Rafael Rigolon, publicado no mural Língua Tradição (Facebook) e aqui transcrito com a devida vénia.