«Enquanto os linguistas estudam a língua como ela é e procuram compreender o seu funcionamento, os gramáticos elaboram uma obra didática chamada gramática normativa, que é uma espécie de manual de uso da norma-padrão da língua. Nesse sentido, a linguística e a gramática são atividades complementares e que contribuem mutuamente.»
Várias disciplinas se ocupam do objeto “língua” em seus vários aspectos: linguística, gramática, filologia e paleografia, dentre outras. Gostaria de falar aqui mais especificamente sobre as duas primeiras.
A linguística surgiu há cerca de 200 anos e é derivada de uma disciplina muito mais antiga, a gramática, da qual, aliás, só se separou definitivamente há cerca de 100 anos.
A gramática já era praticada na Índia por volta do século V a.C. e na Grécia nos séculos III e II a.C. Ela tinha originalmente um duplo papel: descrever a língua e prescrever, isto é, recomendar, o uso correto e mais adequado do idioma com vistas à elegância e à eloquência.
Com o surgimento da linguística como ciência da linguagem, essa atribuição de descrever a língua e de explicar o seu funcionamento, a sua evolução e a sua relação com a sociedade e os falantes passou a ser dela, linguística. Consequentemente, a gramática passou a ser uma espécie de tecnologia, uma aplicação da linguística, assim como a engenharia é uma aplicação da física ou a medicina da biologia. E, assim como no caso da linguística e da gramática, a engenharia e a medicina também surgiram bem antes da física e da biologia.
Portanto, hoje o papel fundamental da gramática, também chamada de gramática normativa, é o de prescrever, isto é, normatizar a chamada norma-padrão. Em outras palavras, orientar como as pessoas devem escrever no padrão formal quando têm de redigir documentos, textos profissionais, trabalhos escolares, relatórios, livros, etc. Assim, pode-se dizer que a gramática tem um papel pedagógico, ao passo que a linguística tem um papel científico.
Enquanto os linguistas estudam a língua como ela é e procuram compreender o seu funcionamento, os gramáticos elaboram uma obra didática chamada gramática normativa, que é uma espécie de manual de uso da norma-padrão da língua. Nesse sentido, a linguística e a gramática são atividades complementares e que contribuem mutuamente.
Mas será que a gramática deixou de lado seu antigo papel de descrever a língua? Na verdade, não, pois as gramáticas que encontramos nas livrarias tanto descrevem quanto prescrevem. É que a língua, sobretudo em sua norma-padrão, tem dois aspectos: um estrutural e um conjuntural. É estrutural na língua tudo quanto seja invariável em função de parâmetros sociolinguísticos como região, faixa etária, nível de escolaridade, classe social, situação discursiva, etc. Assim, quando uma gramática afirma que o adjetivo deve concordar em gênero e número com o substantivo a que se refere, temos um fato estrutural, uma característica definidora da língua portuguesa; em inglês, por exemplo, a regra é muito diferente. Nesse sentido, quem disser “menina bonitos” não estará falando português — ou, pelo menos, revelará não ser falante nativo.
Já quando um gramático recomenda que se empregue “em nível de” e não “a nível de”, estamos diante de um fato conjuntural: em tese, ambas as construções seriam aceitáveis e gramaticais em português, pois não ferem a estrutura da língua. Por sinal, em outros idiomas, a forma preferida ou a única válida é justamente a equivalente a “a nível de”. Assim, a prescrição dos gramáticos nesse caso tem um caráter muito mais estético e estilístico do que propriamente linguístico.
Outro exemplo é a recomendação de que se repitam os artigos definidos numa enumeração: “Comprei os livros, os discos, os sapatos e as roupas que queria”. Alguns gramáticos desabonam a construção “Comprei os livros, discos, sapatos e roupas que queria”. No entanto, essa construção tampouco fere a estrutura da língua; ao contrário, ela privilegia um aspecto muito louvável da comunicação, que é a economia linguística. Desse modo, a prescrição gramatical visa muito mais à elegância do que propriamente à correção.
Depreende-se daí que as gramáticas continuam descrevendo a língua, especialmente em sua expressão escrita culta e formal, naquilo que ela tem de estrutural ao mesmo tempo em que prescrevem usos ditos exemplares, que concorrem com outros de menor prestígio, mas que não necessariamente constituiriam erros no sentido de rompimento da estrutura gramatical da língua. Trata-se aí de uma escolha em grande parte motivada por razões estéticas ou de tradição.
Eu arriscaria dizer que, ao descrever a língua, o gramático se comporta como linguista, com a única ressalva de que sua descrição se atém somente ao padrão formal, enquanto a descrição feita por linguistas abrange todas as variedades da língua. E não há nenhum problema nisso: engenheiros também podem atuar como físicos, realizando experimentos em laboratório (por sinal, muitos fazem isso nas indústrias); médicos podem atuar — e atuam — como biólogos ao estudar, por exemplo, o comportamento de um vírus. Logo, o trabalho descritivo de um gramático não deixa de ser um trabalho linguístico. Em contrapartida, alguns linguistas elaboram gramáticas, umas mais propriamente descritivas, outras mais normativas. E também está tudo bem, não é preciso que haja reserva de mercado nessas atividades profissionais, basta que cada um se atenha a fazer o que tem competência para fazer. Infelizmente, já vi gramáticas e livros escolares com descrições falhas ou pouco rigorosas da estrutura da nossa língua, assim como tenho visto linguistas opinarem sobre normatização gramatical sem ter o devido conhecimento sobre o campo e, com isso, proporem alguns disparates. Mas isso é assunto para outro artigo.
Artigo publicado no mural de Facebook do autor em 23 de abril de 2023.