« (...) Meu humanismo provindo de Camões, filiava-me à língua portuguesa. Uma condição que me outorgava o direito de ter sediado este livro em solo português que levo incrustado no sonho. (...)»
Não pedi emprestada a paisagem portuguesa para cenário de meu romance Um dia chegarei a Sagres. Jamais aspirei fazer de Portugal mero panorama onde pousar minhas idiossincrasias ficcionais sem lhe ofertar em troca a minha alma. Sem lapidar à exaustão a língua lusa cuja majestade o avô Daniel me regalou décadas mais tarde após desembarcar no Brasil.
Recordo que já em 2005, entrevistada pela jornalista Ana Sousa Dias, para a televisão portuguesa, lhe disse que meu próximo romance encrustaria em seu frontispício Sagres, o Infante D. Henrique e personagens do campo. A serviço das utopias que combatiam a melancolia fincada nos domínios rurais.
Só em 2018 dei início à narrativa que desvelava os desígnios do camponês Mateus, cujo imaginário se ancorava nos tempos do Infante, embora vivesse sob a vigência do século XIX. Quando ele e o avô Vicente, enlaçados, padeciam de uma compungida ancestralidade que há séculos sangrava.
Instalada em Lisboa, pautada por premissas estéticas e históricas, nutria-me do que sabia e inventava. Até das sobras da infância, em que visitando a capital lusa, fui levada a conhecer, nos Jerônimos, o túmulo de Camões. Aquele vate que inaugurou o esplendor da nossa língua, e a quem eu recorreria no futuro para melhor entender a sua ínclita geração a qual incluíra o Infante Aviz.
Ao seguir diversos roteiros, auscultava aldeias e urbes, sob o impulso de uma sensibilidade atenta às intrigas, aos lamentos acomodados nos casulos da história. Assim como captava os ruídos da língua falada em épocas que emanciparam o verbo luso. Aquela matéria de índole turbulenta e poética que Mateus e Vicente, em meio ao desconcerto e as trevas da miséria, haviam herdado.
Onde eu fosse deparava-me com uma prodigiosa riqueza. Intuía o mistério contido no palimpsesto daquela cultura. A vida ali tocava-me o coração, até mesmo os brados provindos do estádio do Benfica, meu vizinho. Mal desperta afugentava os excessos da contemporaneidade a fim de palmilhar terra e mares a serviço dos enigmas da criação literária.
Cingida aos camponeses e aos navegantes de outrora, atribuía-lhes a dramática odisseia que nos legaram. Com que fervor segui as pegadas de Gil Eanes na iminência de vencer o Cabo Bojador. Aquela insanidade que em meio a outras estabeleceu um paradigma que fez do reino uma nação. E que impôs ao mundo uma nova imaginação.
Mateus tornou-se o protagonista narrador. Próximo às águas do Minho e da foz do Atlântico ganhou os substratos dos povos antigos cujos vestígios ainda agora alagavam a região. Atingiam Mateus e o avô Vicente, sujeitos à cobiça, às desavenças históricas, às descargas poéticas de uma intensa humanidade.
A ação narrativa consumia-me a imaginação. Havia que dar relevo às porções inaugurais do mundo português. Afinar a linguagem com que saudar lendas, sortilégios, fundações arcaicas. No entanto, para dar curso ao romance, era mister fabular a realidade a partir de um realismo exacerbado, onde boiavam os detritos da paixão humana.
Embora senhora fosse de uma carta que me alforriava atestando minha maturidade autoral, eu sucumbia às incertezas e à fluidez do texto à borda do abismo. Meu humanismo provindo de Camões, filiava-me à língua portuguesa. Uma condição que me outorgava o direito de ter sediado este livro em solo português que levo incrustado no sonho, enquanto o avô Vicente fez-me saber como era a dor de ser humano.
Artigo publicado no Jornal de Letras no dia 6 de outubro de 2021.