Aos 75 anos, Fernando Venâncio assina uma rigorosa investigação sobre as origens da língua portuguesa, escrita como se de um romance de aventuras se tratasse – assinala neste artigo* o jornalista José Mário Silva.
* Texto transcrito, com a devida vénia, da revista E do semanário Expresso, no dia 11 de janeiro de 2020.
Nascido em Mértola, vila alentejana próxima da fronteira com Espanha (à qual regressou para viver, há uns anos, depois de décadas como professor universitário na Holanda), Fernando Venâncio lembra-se de crescer no meio de palavras, muitas palavras. «Eu tinha em casa duas faladoras: a minha mãe e uma prima, a Zulmira, mãe do artista Fernando Pereira. Enquanto engomavam a roupa, com aqueles ferros com brasas dentro, iam falando horas a fio e eu prestava muita atenção ao que diziam. Sempre tive bom ouvido.»Os sons do sotaque regional entranharam-se, mas depressa descobre outros; quando se muda para a capital, primeiro, e para Braga, depois. «Aos 15 anos, eu já juntava três grandes domínios linguísticos portugueses: o alentejano, o lisboeta e o minhoto.» Quando em 1970 parte para Amesterdão, onde se formaria em Linguística Geral, mergulha a fundo no neerlandês, idioma a que rapidamente se acomoda. De todos estes “embates” ficou-lhe uma verdadeira “obsessão pelas palavras”, essa espécie de “loucura mansa” que diz partilhar com “gente sisuda” (o adjetivo aqui é evidentemente irónico) do calibre de um Padre António Vieira, de um Almeida Garrett, ou de um Ricardo Araújo Pereira, todos eles «grandes intérpretes do seu tempo pelas palavras nele disponíveis.»
Este afinco no estudo das «formas» vocabulares, bem como das suas variações e evoluções etimológicas, faz com que a abordagem à história do nosso idioma, plasmada em Assim Nasceu uma Língua, se foque muito mais no léxico do que na gramática. Como deixa bem claro na introdução, Venâncio procurou escrever «um livro sobre palavras, sobre a história delas e sobre estruturas que elas escondem». Assim, ao longo das páginas multiplicam-se os casos concretos, sempre extensamente documentados e analisados, muitas vezes recorrendo às datações dos primeiros registos escritos, ou esmiuçando a origem de certos termos, como galhofa. Se a ideia era observar as palavras, «apanhá-las em flagrante, estudando o modo como surgiram, o porquê daquela exata forma, o modo como evoluíram, criando formações novas, com um novo significado», a missão foi cumprida a preceito. Sem nunca se tornar fastidioso ou aborrecido, este livro propõe de facto uma abordagem lexical muito abrangente. Mas não se fica por aí.
A tese principal do livro é de natureza historiográfica e procura responder à questão da origem da língua portuguesa. Pondo em causa a visão clássica de que o português teria nascido quase em simultâneo com a nacionalidade, no século XII, Venâncio defende que a autonomização do latim terá ocorrido muito antes, uns bons séculos mais cedo, por volta do ano 600. E que essa língua autónoma, que viria a ser a nossa, era o galego. Por outro lado, o português propriamente dito só terá ganhado forma a partir de 1400. A proposta deste duplo movimento, de recuo na origem e manifestação mais tardia do português enquanto língua autónoma, nasce de um trabalho pioneiro. «Ninguém até hoje se abalançara a estes descaminhos», afirma, embora outros linguistas o pudessem ter feito. «Não andei por arquivos, não limpei o pó a nenhum manuscrito ou obra rara em sombrios mosteiros», explicita no seu prefácio. Toda a informação que reúne no livro estava disponível a quem a quisesse utilizar. «Era, e é, pública.» Como se explica então que só agora sejam trazidas a terreiro estas questões? «Conceber que a nossa língua existiu num território (a Galécia Magna) e num tempo em que ainda não existia Portugal, causa estranheza, é contraintuitivo. Estas ideias testam a nossa capacidade de nos entendermos como portugueses. E isso é muito difícil de encaixar, de assumir.»
Ao pôr em causa os mitos de uma leitura «providencialista» da História, segundo a qual o nascimento do país marca «uma cesura absoluta, o início de algo único», é natural que a tese desperte resistências. «Na verdade, este tipo de debate nunca existiu. O livro aparece no meio de um silêncio generalizado.» Por isso, Venâncio tem consciência de que a obra não terá vida fácil. «Numa primeira fase, acho que será o público geral a ser mais recetivo. Mas depois a própria classe linguística acabará por ser pressionada a rever muitas das suas verdades convenientes.» Adepto de uma boa polémica intelectual, como as que regularmente protagonizou no espaço público durante as últimas décadas, aguarda as opiniões contrárias que por enquanto ainda não vieram. «Cá estarei para elas.»
Entretanto, ao e-mail para comentários, sugestões ou emendas, que criou expressamente para o livro, já chegaram as primeiras mensagens. Mais de 20 pessoas deram contributos que «serão muito úteis para próximas edições» (a segunda foi lançada esta semana), a que se juntam conversas mantidas com interessados no Facebook. «Sinto que neste momento há quem esteja a pensar comigo e isso é-me tremendamente útil, além de ser um incentivo.» Embora fixe muitos anos de investigação, Assim Nasce uma Língua está longe de ser um trabalho terminado. Basta que novas datações surjam para que algumas passagens fiquem desatualizadas. Foi precisamente o que aconteceu nos últimos dias de 2019. Nas páginas que dedica às origens obscuras da palavra “minhoca”, Venâncio punha em causa uma eventual raiz africana – proposta de outro estudioso – por ter encontrado uma referência num texto de 1522. Acontece que um investigador galego, Paulo Gamalho, publicou online um artigo em que regista o uso do vocábulo num livro de D. João I, cerca de 1415, e mais para trás ainda, no Livro de Alveitaria de Mestre Giraldo, datado de 1318, um século e picos antes do início dos Descobrimentos. «Eis um exemplo de que muitas palavras são muito mais antigas do que imaginávamos. Numa próxima edição, contarei esta história. Até porque 1318 é apenas a primeira ocorrência escrita conhecida, mas nessa altura a palavra poderia já circular oralmente há muito tempo.»
Embora só agora tenha visto a luz, o projeto deste livro vem do século passado. «É uma ideia muito antiga que sofreu uma aceleração recente, à medida que nele confluíam materiais dos meus estudos e reflexões sobre a língua portuguesa», com particular ênfase na relação íntima e visceral com o galego, um aspeto «desde sempre menosprezado, quando não esquecido». Ao explorar esse laço e as marcas que ainda hoje permanecem, nomeadamente nas discussões entre galegos sobre o lugar que o português deve ter na vida cultural da Galiza, Venâncio quer prestar justiça a uma herança pouco assumida e mais determinante do que a maioria dos trabalhos de linguistas portugueses deixa supor.
Além de reforçar a importância desse vínculo, o livro também olha para o futuro da língua portuguesa, que Venâncio classifica de «idioma em circuito aberto». Aos poucos, a tendência será para a criação de outras línguas: o brasileiro, o angolano, o moçambicano. A separação estrutural entre o português europeu e as outras formas já está em curso, mas é um fenómeno demorado. «A língua muda, mas muito lentamente. E é por isso que eu reconheço em jovens escritores, como a Ana Margarida de Carvalho e o Bruno Viera Amaral, as mesmíssimas expressões e modos de escrita que eu usava há 50 anos.» Não vale a pena esperar ruturas significativas nos próximos dois séculos. «O português europeu será bastante semelhante ao que é hoje, porque, apesar de muitas mudanças, o conjunto mantém-se uniforme e sólido. A não ser que aconteça alguma enorme catástrofe, algo semelhante à peste negra, acredito que o português está para ficar.»