O advento das redes sociais trouxe para a ribalta os verbos amigar e desamigar, no seu sentido mais primitivo de «tornar amigo» e «deixar de ser amigo», para representar a relação de amizade entre dois indivíduos. Ambos já existiam, devidamente dicionarizados, porém aplicados com sentidos distintos destes que agora plenamente (re)ganharam.
Embora etimologicamente provenham de amigo, ambos os verbos eram sobretudo utilizados com um sentido pejorativo e marcado pela censura moral. Amigar-se ou desamigar-se era «amancebar-se», «tornar-se amante», ou deixar o estado de mancebia, o concubinato, a condição de amante. Esse era o seu uso comum e largamente maioritário. Quem vivia maritalmente, mas não era casado, era «amigado» — expressão que, por via da tradição judaico-cristã dominante, tinha, até há não muito tempo, uma marcada carga de censura moral — já que vivia uma união ilícita, sem a chancela da Igreja e/ou do Estado. Quem não era marido e mulher mas vivia como tal era «amigo» e «amiga». Uso que, aliás, encontra filiação na antiquíssima dimensão amorosa do «amigo» — o ser amado — cantada pela lírica medieval galaico-portuguesa nas suas «cantigas de amigo». Ainda hoje, aliás, se reconhecem na língua, embora já sem estigmatização, resquícios desse uso da palavra amigo(a): uma namorada(o), que ainda não se assume como tal, é amiga(o). E, mais recentemente, alguém com quem se tem uma relação íntima, mas sem o compromisso de namorada(o) ou noiva(o), é muitas vezes coloquialmente referida(o) como uma(um) «amiga(o) colorida(o)». Esta era, assim, a acepção mais comum daqueles verbos, o que é implicitamente reconhecido, por exemplo, por José Pedro Machado, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, e pelo Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que a registam em primeiro lugar.
Eis, pois, como dois verbos, destinados pela etimologia a ter uma ressonância positiva, adquirem uma conotação negativa quando aplicados à relação entre dois indivíduos. A comprovar isto, veja-se — apesar de a maioria dos dicionários registarem amigar e desamigar — a extrema dificuldade em conseguir abonações categóricas para os sentidos de «tornar-se amigo» ou deixar de o ser, ilustrando a relação entre duas pessoas concretas. O Houaiss, o melhor que conseguiu foi, sem citar a fonte, a frase: «viu amigarem-se espíritos desavindos», mais abstracta do que referenciada a indivíduos concretos, e o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, um excerto dos Mistérios de Lisboa, de Camilo Castelo Branco: «Porque não aproveita melhor o seu tempo, tirando significados e amigando-se com o Virgílio, seu inimigo cruel? Esquece-se que foi reprovado em latim no ano passado, e que há-de sê-lo no ano que vem, se gastar o seu tempo a compor discursos para fazer rir os meus condiscípulos à minha custa?». Ambas as «amigações», como se vê, bastante etéreas e a segunda até mesmo metafórica. Das «desamigações», então, nem rasto de abonação. No Corpus do Português, por exemplo, não se encontra sequer uma abonação para esse sentido de ambos os vocábulos. A única abonação que encontrei e que inequivocamente comprova este uso é de Gaspar Correia, do séc. XVI, em Lendas da Índia «[…] grande desejo que tinha El-Rei [D. João II] de o conhecer [o Preste João] e com ele se amigar […] por haver informação de que era cristianíssimo rei» (cap. 1, p. 5, cit. por Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, v. II, p. 366). O que mostra que a palavra amigar teve remotamente esse uso que depois foi perdendo. É possível, porém, encontrar ainda o verbo amigar com o sentido de «tornar amigo» aplicado, por exemplo, a entidades colectivas. O escritor Valter Hugo Mãe, por exemplo, usa-o desse modo de forma feliz: «a busca incessante de chegar ao colectivo dos homens, seduzindo-o para a grande história humana no sentido de amigar as gentes e combater toda a exclusão» (Público, 23-04-2008, cit. por Isabel Coutinho).
Que explicação dar, então, para o facto de tais verbos não terem sido aplicados à relação de amizade entre duas pessoas concretas, ou seja, no seu sentido mais expectável? Consideremos apenas o amigar, dado que a utilização do desamigar tem, apesar de tudo, algumas diferenças. Para além da conotação fortemente pejorativa que o mesmo adquiriu quando referenciado à relação entre duas pessoas e que terá embotado o seu destino primitivo, estou em crer que tal se fica também a dever à duração da acção do verbo. É que pelo facto de ser um verbo transitivo, que por definição implica uma acção voluntária de um indivíduo sobre outro, comporta uma intencionalidade e geralmente um imediatismo na acção que não se quadra de forma verosímil com o desenvolvimento do processo de ligação de uma pessoa à outra por laços de amizade, com o «tornar-se amigo». Veja-se mesmo a dificuldade que temos em exprimi-la — dizemos, por exemplo, «fazer um amigo» — e os dicionários registam: «tornar-se amigo» ou «unir por amizade», as quais não ilustram, longe disso, o longo processo que conduz ao estabelecimento de uma relação de amizade e à aquisição da categoria de «amigo» entre duas pessoas, o qual não é instantâneo, requer tempo, conhecimento, maturação. Não é uma acção que principia, se concretiza e acaba num determinado momento.
O amigar e o desamigar, referenciados à relação de amizade que se estabelece entre duas pessoas, ressuscitam agora com a emergência das redes sociais, em que «fazer um amigo» ou pelo menos «aceitar um amigo» e, do mesmo modo, recusá-lo, não implicam um processo longo, antes uma acção imediata, à distância de um clique. Aceita-se um amigo, amiga-se alguém num acto instantâneo e «desamiga-se» alguém, do mesmo e exacto modo. O que permite que ambos os verbos (re)ganhem agora a sua plena significação.
O que esta recuperação do significado originário dos verbos amigar e desamigar de forma eloquente ilustra é a dinâmica da língua que passa não apenas pelo nascimento de vocábulos e a morte de outros, mas também pela ressuscitação de outros tantos. Com o verbo amigar a cair em desuso, dada a menor censura moral das uniões de facto, e por consequência do verbo desamigar, que não vive sem o primeiro, ambos estariam, não fora as redes sociais, condenados a uma morte certa. Porém, e parafraseando Mark Twain, parece que as notícias da morte destes verbos eram manifestamente exageradas… Se dúvidas houvesse sobre a nossa capacidade de todos os dias reinventarmos a língua, elas aí estão desfeitas.