Tudo já se aceita no uso da língua? Evocando a memória do normativista brasileiro Napoleão Mendes de Almeida (1911-1998), o autor levanta várias questões em tom provocatório neste texto publicado em 15/2/2017 no jornal digital "Estadão".
Surgem ‘adevogados’, trocam-se ‘pineus’ e o monstro verde irritadiço é o incrível ‘Hulki’.[1]
A língua é um fenômeno vivo. Pertence aos seus usuários e muda constantemente. Esperneiam gramáticos, exasperam-se puristas, descabelam-se professores: ela ignora molduras e flui orgânica nas ruas e famílias.
Há um uso regido pela gramática normativa que estabelece regras. Às vezes, elas são divertidas. Por exemplo: existe uma parte da gramática que trata da produção oral das palavras, ou seja, como pronunciar ou onde cairia a sílaba tônica de cada termo. Você tem dúvida, por exemplo, deve-se dizer "rubrica" ou "rúbrica"? Esse setor da gramática resolve. O correto seria pronunciar o “e” fechado na palavra obeso ou aberto? Por que eu falei que era um setor divertido? Porque a parte da gramática que trata das dúvidas sobre sílabas tônicas e outras é ortoepia ou ortoépia, ou seja, admite duas formas de pronúncia. Quem deveria me dizer qual a forma correta admite duas formas.
Existe o campo da linguística, que irritava o solene gramático Napoleão Mendes de Almeida. Ela é ampla e abrange, inclusive, a gramática normativa. Porém, antes de indicar o certo e o errado, analisa a apropriação/construção/ produção de sentidos de comunicação para uma pessoa ou para um grupo. Assim, ir “de a pé” ou ser “de menor” não seriam, do ponto de vista linguístico, erros, mas usos com explicação racional para o motivo do desvio da norma culta. Por vezes, é uma tentativa de hipercorreção, como é o caso do emprego de “menas”. Figura ser mais correto concordar o gênero e muita gente lasca um “menas pessoas” porque parece contraditório dizer menos. Em outras ocasiões, nossa resistência lusófona ao excesso de consoantes provoca a introdução de uma vogal onde não caberia na ortoepia ortodoxa. Surgem “adevogados”, trocam-se “pineus” e o monstro verde irritadiço é o incrível “Hulki”. O uso recebe um nome complexo: suarabácti (ou anaptixe), a criação de uma vogal de apoio. A pronúncia “pissicologia” causa-lhe horror, ó meu parnasiano leitor? Como eu afirmei, a língua é viva. O latim blatta transformou-se em brata e, por suarabácti já consagrado, você tem nojo da barata, a antiga brata. A língua é viva e nada impede que, em breve, carros rodem sobre “pineus”.
Nós sintetizamos (vossa mercê vira você e daí surge o internético vc), colocamos vogais, adaptamos, decompomos e refazemos. O império de Napoleão (o gramático) dá origem a muitas pequenas repúblicas, vivas, pulsantes e indiferentes às vestais oficiais e oficiosas do tabernáculo das regras. No sentido empregado por Noam Chomsky, eu preciso de uma gramaticalidade para minha expressão, e nem sempre é a prevista no código napoleônico.
Língua é história. Em 1912, um navio britânico a caminho dos EUA naufragou de forma trágica. A elite brasileira leu sobre o evento e pronunciou o nome do navio como se fosse francês: Titanic, enfatizando a sílaba final e produzindo o gracioso biquinho da francofonia. Ninguém pronunciou com sonoridade inglesa ou traduziu para Titânico. Mais de um século, ainda falamos como se o navio tivesse zarpado de Marselha e sido confeccionado em um porto gaulês. Por quê? A elite brasileira era usuária da língua de Paris. Passadas mais algumas décadas e para os jovens, imersos em um mundo onde o inglês é língua franca contemporânea, a praia francesa se torna algo como “náici”, pois Nice sucumbiu ao vagalhão anglófono. Língua é história.
Hoje, a fortaleza da língua de Camões tem um buraco na muralha pelo qual ingleses penetraram aos magotes. Os habitantes de Lusitânia viram uma imigração ilegal poderosa. Somos usuários de um dialeto inglês-lusófono.
Criamos muito. Deletar, por exemplo: não é inglês e não é português. Na origem, uma palavra latina que chegou ao francês e ultrapassou o canal da Mancha. É a nossa tradicional antropofagia, analisada pelos Andrades, Oswald e Mário. Pedem-me budget e eu penso na antiga, sólida e útil palavra orçamento. A reunião flui assim: “O senhor será keynote speaker e a escolha é em função do seu know-how sobre o modelo ted para CEOs. Faremos um meeting de alinhamento para que os links da performance atendam aos itens do ranking apresentado e que colocamos no site. Depois, encerramos com um brunch para reforçar network nesse kickoff. Ok, professor?”. Eu respondo: “Yeahhh! Parecemos Zeca Baleiro (Samba do Approach): Toda hora rola um insight / Já fui fã do Jethro Tull / Hoje me amarro no Slash / Minha vida agora é cool /? Meu passado é que foi trash... (...)”.
Estamos próximos de Salvatore, a personagem ensandecida do Nome da Rosa que misturava todas as línguas na imaginação de Umberto Eco. Às vezes, é uma palavra emprestada, por vezes uma construção frasal que guarda a marca de outra língua.
Não adianta solidificar uma armadura que defenda o português. O ataque não é externo, é opção dos cidadãos de dentro. Podemos insistir que ludopédio seria mais correto, futebol está consagrado e ponto. O chá da academia será acompanhado de cookies e de cupcakes. A língua pode até morrer um dia, mas nós, seus usuários, partiremos antes. Isto assusta ou consola? Good luck! Boa semana a todos.
[1] N. E. – O autor refere-se a uma característica fonética do português do Brasil: trata-se da articulação de um [i] nos encontros de consoantes oclusivas (advogado > "adivogado"; pneu > "pineu") ou de oclusivas com certas fricativas (psicologia > "pissicologia"); também como [i] se realiza o -e átono final (parque > "parqui"; assim se explica que o nome estrangeiro Hulk soe como "hulqui"). A pronúncia [i] do e átono final é conhecida em Portugal como traço regional, ocorrendo nos dialetos centro-meridionais, por exemplo, no Alentejo.
in jornal digital Estadão de 15/02/2017.