« (...) As línguas são uma das mais importantes invenções humanas. Mas por que razão há tantas por esse mundo fora? E porque estão sempre a mudar? (...)»
A primeira língua
Há-de ter havido uma primeira língua, inventada por um grupo de Homo sapiens ali num qualquer recanto de África. O relato desta origem está perdido para sempre – imagino que tenha sido um processo gradual e que ninguém, em nenhum momento, tenha pensado: «Olha, uma língua! É útil! Vamos começar a usá-la…»
Este desenvolvimento gradual da linguagem teve consequências culturais tremendas — e também biológicas, de acordo com muitos linguistas. Tanto a nossa garganta como o nosso cérebro — e, se virmos bem, todo o nosso corpo — parecem estar particularmente bem-adaptados ao uso das línguas humanas. Aqui temos um ponto controverso na linguística: há linguistas que sublinham o carácter biológico da linguagem; outros sublinham que a linguagem humana usa o equipamento biológico pré-existente, sendo, no entanto, um desenvolvimento puramente cultural. Provavelmente, como aconteceu com muitas outras coisas — incluindo a possibilidade de cozinhar os alimentos — uma invenção cultural teve consequências biológicas que permitiram desenvolver ainda mais a invenção, num ciclo virtuoso. É um tema interessante, mas temos de avançar…
O certo é que, uma vez inventada, nenhum grupo humano deixou de usar esta particular linguagem dividida em muitas línguas. Com toda a probabilidade, quando o ser humano saiu de África já usava línguas tão complexas como as línguas da actualidade.
Eis um primeiro aspecto fundamental da linguagem humana: é comum a toda a humanidade. Mais: todas as línguas humanas têm um conjunto de sons que se conjugam para formar palavras — e todas as línguas têm regras para dar formas a essas palavras ou ligá-las de maneira particular para criar frases. Além disso, todos os seres humanos saudáveis aprendem as línguas que os rodeiam nos primeiros anos e todos os seres humanos estão igualmente preparados para aprender qualquer língua.
Estamos agora perante o segundo aspecto fundamental da linguagem humana: não há apenas uma língua. As características de cada língua em particular não estão impressas nos genes. Os falantes duma língua não estão biologicamente mais preparados para aprender essa língua em particular — um bebé nascido de portugueses que cresça na China aprenderá chinês tão bem como os bebés nascidos de pais chineses.
As línguas são transmitidas por aprendizagem nos primeiros anos de vida. Durante esses primeiros anos, as crianças revelam uma capacidade extraordinária de aprender a língua que ouvem em redor, capacidade essa que começa a diminuir de forma muito marcada na adolescência. Assim, um adulto irá aprender uma nova língua com alguma dificuldade e dificilmente ao nível de um falante nativo.
Por que razão não há apenas uma língua?
Esta pergunta merecia um livro inteiro — ou, aliás, muitos livros, talvez contraditórios, porque há várias teorias sobre o assunto.
Para chegarmos a uma possível resposta, imaginemos um mundo onde a humanidade falava uma só língua. Nesse mundo monolingue, imaginemos o dia em que alguém descobre um animal novo. O nosso descobridor dá um nome ao animal: elom. Caça o pobre animal e leva-o até à sua tribo, onde todos ficam contentíssimos. O elom é delicioso bem assado no fogo (tecnologia que a tribo tinha descoberto umas semanas antes).
Dias depois, a nossa tribo encontra uma outra tribo. Contam, entusiasmados, a descoberta do elom. A outra tribo fica baralhada e diz-lhes que aquele animal se chama ganim! Já andavam, aliás, a comer ganim assado há muitos anos!
Raios. E agora? Elom ou ganim? Como manter a unidade da língua mundial?
Não há resposta. Seria impossível. Cada tribo vai continuar a chamar ao animal o nome que inventou: elom ou ganim. Mesmo que aquelas duas tribos chegassem a acordo (e não chegariam), uma terceira tribo poderia nem vir a saber que o animal que anda a comer tem outro nome na tribo da floresta ao lado.
Multipliquem isto pelas descobertas e invenções de cada tribo e aí têm: várias línguas. Multipliquem ainda pelo número de tribos do mundo e percebem por que razão se multiplicam as línguas.
Estou a concentrar-me, só para facilitar o exemplo, no léxico. Mas o mesmo se aplica à sintaxe e a todos os aspectos da língua. Convém ainda avisar: estes processos raramente são conscientes. A gramática de cada língua vai surgindo através da interacção entre os falantes, sem que nenhum Conselho Superior da Língua determine quais são as regras…
Se quisermos pensar um pouco melhor na questão, imaginemos que a tribo original se divide em três. Anos depois, uns dirão elom, outros dirão alom, outros dirão alomi, e por aí fora: em breve teremos três línguas. Portanto, mesmo quando começamos com uma só língua, rapidamente encontramos divergência linguística se houver algum tipo de separação entre os falantes.
Como a humanidade nunca viveu como uma só tribo (pelo menos, nos últimos largos milhares de anos), nunca poderia ter uma só língua, a não ser que essa língua fosse muito limitada e inflexível. Ora, a linguagem humana é flexível: é isso que a distingue das formas de comunicação animal (que nós também temos: basta pensar nos gritos). Para ser flexível, tinha de estar sujeita a mudança e permitir a dispersão, porque é impossível uma reunião de toda a humanidade para discutir que palavra usar para cada situação nova que encontramos.
As línguas mudam porquê?
Pensemos nessas tribos nómadas, de há muitos milhares de anos, que percorriam as savanas, as florestas e as montanhas dum mundo sem aldeias nem cidades. Cada uma dessas tribos teria a sua língua, com as suas regras e palavras, uma língua preparada para contar histórias, avisar dos perigos em redor, dizer mal do vizinho, ensinar a usar as ferramentas tradicionais, explicar a criação do mundo, namorar em sussurros, mentir descaradamente, discursar na coroação do chefe, ordenar a execução do guerreiro capturado, contar boas anedotas à volta do delicioso javali. Ou então fazer conversa de chacha, a meio da tarde, enquanto se está sentado com um amigo à espera do regresso dos pais. Ah, e certamente haveria conversas sérias, de adultos, a criticar a maneira como os filhos falavam, a gozar com a maneira de falar daquela mulher vinda de outra tribo e a apontar um erro numa frase infeliz que o chefe usara num discurso.
Uma tribo, que é um grupo muito mais pequeno que as actuais sociedades ocidentais, teria uma língua talvez mais uniforme do que as línguas que conhecemos. Certamente que a língua seria usada de maneira diferente numa cerimónia ou na entre amigos — mas as várias famílias da tribo não teriam sotaques muito diferentes nem vocabulário muito diverso. Por outro lado, como as tribos viviam num grupo coeso e claramente separado de todos os outros, as línguas tenderiam a separar-se umas das outras de forma bem marcada.
Temos aqui um ideal que ainda hoje muitos levam na cabeça: a língua deve ser uniforme dentro de cada sociedade e bem distinta das línguas que a rodeiam. A nossa paisagem linguística é muito distinta da paisagem idealizada dum mundo tribal, mas esse tribalismo linguístico ainda sobrevive, bem forte, no coração de muitos falantes.
Apesar da tal uniformidade, a verdade é que dificilmente duas pessoas falariam exactamente da mesma maneira que a pessoa do lado. E já nesses tempos cada geração tenderia a mudar subtilmente a língua que recebia. Porquê? Há várias explicações, mas a mais importante é esta: uma língua não é aprendida conscientemente. O cérebro duma criança refaz o sistema linguístico que está no cérebro dos pais sem que ninguém lhe ensine as regras. Este método é extraordinariamente eficaz — o cérebro está afinadíssimo para essa aprendizagem durante os primeiros anos de vida. Só assim se explica que uma língua mantenha muitas das suas características fundamentais ao longo de séculos e séculos. Mas não é um sistema perfeito — e ainda bem! Os seres humanos não são robots de fácil programação. Não há um cérebro igual. Não há um corpo igual. Somos todos subtilmente diferentes. Mais: as circunstâncias em que ouvimos a língua dos nossos pais é diferente de pessoa para pessoa. As conversas, as palavras que ouvimos — não há ninguém que faça o mesmo exacto percurso. Cada falante tem a sua história e aprende uma língua muito pessoal — os linguistas têm, aliás, um nome para essa língua pessoal: o idiolecto.
Por outro lado, se cada pessoa fala de maneira particular, a verdade é que cada língua tem regras — e os falantes notam quando outra pessoa não cumpre uma regra. Não falo das regras de ortografia ou de certos tabus — falo, por exemplo, disto: se um português disser «Vou com praça!», quem o ouvir estranhará. O sistema que aprendemos leva nos a aceitar umas frases e a recusar outras. Mais uma vez, este sistema é subtilmente diferente em cada cérebro — há frases que podem acordar a sensação de erro num falante, mas não noutro. Nada disto é simples…
As línguas, que existiam muito antes de alguém saber escrever ou de aparecerem as primeiras gramáticas, são criadas pelo uso, sem plano, sem decisões conscientes. São um conjunto de hábitos enraizados — hábitos esses que são transmitidos às crianças através de um sistema que aproveita as características do cérebro humanos. Cada língua é usada por pessoas diferentes e desse uso nascem regularidades, pormenores gramaticais, palavras diferentes – e que estão sempre a mudar, devagar, mas inexoravelmente, pelos séculos fora. Se uma língua se aguenta muitos séculos, nunca se aguenta igual ao que era.
Línguas em contacto
Uma língua muda porque não é usada por máquinas — mas também por influência de outras línguas. Uma tribo isolada é uma ilusão — até nesse mundo antigo as tribos encontravam-se, conversavam, misturavam-se mais do que a ideia idealizada que descrevi acima faria crer. Uma língua são as palavras que a compõem e as regras para mudar essas palavras e para as pôr numa ordem particular. Assim, imaginemos uma tribo ali a cirandar pela zona do que é hoje a Itália e que chama a um rio "xa sart" (estou a inventar). O "xa" seria um artigo e "sart" seria «rio». Pois, a tribo divide-se em duas. Dois séculos depois, encontramos uma das tribos na zona dos Pirenéus. Chama ao rio "xe sarto". A língua mudou. Já a outra tribo estará ali nos Balcãs e chama ao rio «sartxa». O artigo ficou no final da palavra. Porquê? Talvez por influência de outra tribo das redondezas, que fala uma língua muito diferente, mas em que os artigos vêm depois dos nomes.
O exemplo é inventado, mas há um fenómeno real muito parecido: o romeno tem artigos, como todas as línguas latinas (apesar de o latim clássico não os ter). Ora, ao contrário de todas as irmãs mais ocidentais, o romeno põe o artigo no final das palavras — tudo leva a crer que essa particularidade surgiu por influência das línguas das redondezas…
Português | Romeno |
criança | copil |
a criança | copilul |
Todas as línguas têm uma gramática — e esta gramática faz-se de elementos que existem numas línguas e não noutras e podem funcionar de maneira diferente em cada uma delas. A existência de artigos, os tempos dos verbos ou a falta deles, o sistema de pronomes, as construções proibidas, as palavras consideradas sagradas ou proibidas, a maneira como os verbos se conjugam para criar tempos compostos, a ordem típica das palavras na frase, os géneros dos nomes, a existência de um, vários ou nenhum plural, a maneira de expressar carinho e um grande et caetera – tudo isto pode mudar e muda de língua para língua. Não é só o vocabulário – não, a ideia um pouco ingénua de que para saber uma língua é preciso apenas decorar palavras é fácil de desmontar depois de alguns minutos a tentar aprender outra língua.
A nossa língua é descendente em linha directa da língua de algum caçador antigo. Muitas das características do português decorrerão ainda das características dessa língua — por exemplo, termos a tendência para pôr o verbo a seguir ao sujeito (uma tendência muitas vezes contrariada, mas ainda assim uma tendência) pode muito bem ser resultado da maneira como uma tribo particular, há muitos milhares de anos, construía as suas frases, ao contrário do que acontecia na tribo mais próxima, que punha os verbos sempre no início das frases. Esse traço gramatical aguentou-se. Outros mudaram. A nossa gramática, a nossa língua, chega-nos da mistura daquilo que se mantém ao longo dos séculos e da acumulação de pequenas mudanças, graduais, ao longo da História — um processo ininterrupto de transmissão e mudança, que chegou até nós desde esses tempos em que os seres humanos andavam pelo mundo em tribos, a caçar, sem poiso fixo.
Digo ainda isto: as línguas das tribos divergiam, mas nunca estiveram isoladas. Sempre houve contactos entre pessoas de várias línguas. Sempre houve gente a aprender várias línguas. Estes contactos levam a interferências, mortes de línguas, misturas, complicações. Esses milhares de anos antes da escrita representam uma História de conquistas, vitórias e derrotas que eram transmitidas de geração em geração, pelas línguas que já não existem, histórias que hoje já ninguém pode reconstruir, mas cujo ritmo ainda se nota nas nossas próprias histórias, medos e paixões.
As línguas assentam arraiais
A certa altura, deixámos de ser nómadas. Com a invenção da agricultura, alguns grupos de seres humanos começaram a viver num mesmo local ao longo de toda a vida. Nunca deixaram, claro está, de falar – mas a língua começou a estar ligada a determinado território.
O território de cada língua podia confinar com outro, colonizado originalmente por outra tribo, onde a língua podia ser tão diferente que encontramos aí uma clara fronteira linguística. Se virmos bem, esse conceito de fronteira não fazia sentido entre tribos.
Começam então outras histórias: conquistas, invasões, línguas que são abandonadas perante a força da língua dos invasores, línguas antigas que continuam a ser faladas em casa, mas esquecidas na praça, entre muitas outras voltas e reviravoltas.
Mesmo no território onde os falantes duma língua se estabeleceram, a distância cria diferenças. Os habitantes de um povoado percebem bem os habitantes da aldeia vizinha, que percebem bem os habitantes da aldeia seguinte – e por aí fora. Mas se juntássemos os habitantes de duas aldeias distantes, talvez tivessem muita dificuldade em compreender-se. Nestes casos, não é fácil saber onde começa uma língua e começa outra. Estamos perante aquilo que se chama actualmente um continuum dialectal. Não há fronteiras marcadas, mas há uma grande diversidade no território.
Pois bem. Neste território de línguas que ora mudam abruptamente ora vão divergindo subtilmente de terra para terra, temos pontos nevrálgicos: as cidades, centro de reinos, impérios e poderes vários. Esses poderes dão um prestígio superior à maneira de falar típica do local onde se instalam – o que também podemos dizer em relação à classe social dominante, seja ela qual for. Afinal, a variação linguística não é – nem nunca foi – uma questão meramente geográfica.
Há formas de falar que ganham um prestígio imenso – e começam a expandir-se, apagando formas de falar de outros locais ou regiões — e isto acontece tanto a um traço gramatical, a uma palavra, como a uma língua inteira.
No fundo, a linguagem humana está sujeita a forças centrífugas – as línguas estão sempre a mudar, estão sempre a surgir palavras novas, ninguém fala precisamente a língua dos pais nem dos filhos, há uma necessidade inerente de dizer coisas novas, de novas maneiras – e a forças centrípetas – há sempre formas consideradas de prestígio que exercem a sua força de atracção.
Há um ponto importante: estes centros de poder atraem muitas pessoas, de muitos locais. Assim, o seu dialecto particular tende a incorporar características de muitos locais. A forma de prestígio atrai outras formas, tanto no sentido de lhes roubar elementos, como de apagar aqueles que não são «escolhidos» para fazerem parte da língua de prestígio – e agora já uso a palavra «língua» precisamente porque é o termo que foi sendo dado aos dialectos de prestígio, assumindo depois um território que inclui outros dialectos.
Temos ainda a considerar uma das grandes invenções da Humanidade: a escrita. Sabemos que foi inventada em vários locais. Um dos primeiros foi a antiga Suméria, onde um sistema de registo contabilístico evoluiu para um sistema de registo da língua. Já a nossa escrita em particular aparece numa sucessão que remonta – pelo menos – ao Antigo Egipto. Se a escrita dos egípcios tem ou não relação com a língua dos Sumérios é um ponto controverso nesta história. Seja como for, a escrita baseia-se sempre no dialecto de prestígio de determinado território, falado numa ou várias cidades. Ficamos assim com um território com muitas diferenças e alguns pontos em que a forma de falar tem um prestígio imenso, plasmado no seu uso na escrita. Este uso começa a ser descrito e modelado em obras que tinham – e têm – o objectivo de regular o uso da língua: as gramáticas, os dicionários, os livros de estilo e listas de "erros comuns". Entramos no território da norma da língua, que pode ser encarada de forma mais aberta ou dinâmica ou mais fechada e restrita.
Pois bem: num mundo em que as línguas estão, muitas delas, ligadas a um território e têm uma norma escrita, todas continuam a mudar, com mais ou menos tropeções. E, como há tantos milénios, continuamos a usá-las para contar histórias, avisar dos perigos em redor, dizer mal do vizinho, ensinar e aprender, explicar a criação do mundo, namorar em sussurros, mentir descaradamente, contar anedotas à volta da mesa…
Cf. História das línguas de Lisboa antes de Portugal
Referências
Este artigo é baseado numa secção do meu livro O Galego e o Português São a Mesma Língua?, publicado pela Através, que está agora a chegar às livrarias. O excerto acima continua, no livro, com a história particular das línguas ibéricas.
Neste site, já conversámos sobre a história do português e ainda sobre a história do inglês e do cabo-verdiano, além de perguntarmos qual é a língua mais antiga do mundo, o que acontece quando morre uma língua, entre outras viagens pelas histórias das línguas e das palavras.
Deixo cinco sugestões de leitura, no bom e velhinho papel, sobre o tema:
Crystal, David. The Cambridge Encyclopedia of Language. 3.ª edição. Cambridge University Press, 2010.
Deutscher, Guy. The Unfolding of Language: An Evolutionary Tour of Mankind’s Greatest Invention. Arrow, 2006.
Janson, Tore. História das Línguas: Uma Introdução. Trad. Fernando V. Corredoira. Através, 2018.
McWhorter, John. The Power of Babel: A Natural History of Language. HarperCollins, 2001.
Ostler, Nicholas. Empires of the Word: A Language History of the World. HarperCollins, 2005.
Artigo publicado no blogue Certas Palavras, com a data de 27 de junho de 2019 – de que o autor se baseou de um capítulo do seu livro O Galego e o Português São a Mesma Língua?. Escrito conforme a norma ortográfica de 1945.