«(...) A pontuação regula o nosso pulso cardíaco e a nossa respiração. Modula a leitura e dota-a de ritmo, música e sentido. (...)
Detesto, como vocês não não podem fazer ideia, os puristas da língua. Os que olham para o português apenas a partir de Portugal e o convertem num objecto de culto (para esses, o português de Portugal deveria manter-se inalterável através dos séculos, como no tempo das danças religiosas medievais).
Se teimosamente arrasto comigo o anterior acordo, não é por fidelidade ou juramento de fé aos seus princípios, é apenas porque a minha preguiça é mais forte e constante que a minha vontade de pôr em prática a nova grafia.
Pense-se o que se quiser, mas a nossa identidade é também a forma como aprendemos a ler, a escrever e a olhar para as palavras. E nesta altura e a esta hora, em que já passei o equador da minha vida, custa-me despedir-me do que fui e já não sou.
As línguas são territórios de contaminação e impurezas, de desvios e corrupções, que incorporam o antigo e o novo, o antigo e o actual, o clássico e o moderno, o académico e o vanguardista; ou seja, que misturam realidades díspares e reflectem conjunturas e camadas sociais diferentes (estrangeirismos, arcaísmos, calão, etc.).
O valor (ou riqueza) e a duração (ou vivacidade) de um património linguístico não dependem apenas da força acumulada de uma tradição literária, bem ancorada na cultura de um país, mas também do seu uso popular, da sua verbosidade, dos seus vocábulos, das suas dicções peculiares.
O erudito procura sempre a veia popular, tal como esta, tantas vezes, pode e deve ser elevada à dignidade literária. Almeida Garrett, nas Viagens na Minha Terra, fê-lo quando se referiu aos olhos verdes de Joaninha: «Os olhos e Joaninha eram verdes... não daquele verde descorado e traidor da raça felina, não daquele verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não, eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate».
José Gomes Ferreira, em O Mundo dos Outros: Histórias e Vagabundagens (1969), utilizou este mesmo processo popular de superlativação (pela repetição) e mesclou-o com o recurso literário da intertextualidade, com evidente preocupação letrada: «os olhos que, até naquele borrão preto empastado pela tinta, continuavam verdes, verdes, verdes, verdes.»).
Não perceber que o erudito e o popular são uma só forma de cultura em permanente interacção, que a alta cultura passa lentamente para o plano popular e que aquela recicla inúmeros contributos das práticas e representações das massas, é não perceber patavina do manejo das línguas.
Mas mais ainda que os puristas da língua, detesto os que se ocupam a corrigir em público, com ar catedrático, os erros ortográficos dos outros.
Quem frequenta as redes sociais mete-se regularmente em complicações e situações embaraçosas. Faz parte das regras do jogo e não vale a pena fazer grandes ondas.
Lendo o Poema Em Linha Recta, do Fernando Pessoa, podemos fazer uma ideia do ambiente mental destes escrupulosíssimos mestres-escolas: ali, no Facebook ou no Twitter, eles são campeões em tudo, nunca têm um acto ridículo, nunca foram senão príncipes – todos eles príncipes – da gramática e da ortografia.
A respiração das palavras
Mudando de assunto, sem sair dele, gostaria de fazer algumas observações sobre a pontuação, não para ensinar ou dar lições aos leitores (Deus me livre de tal tentação!), mas para vos entreter (entreter-vos não é, parece-me, fazer-vos um mau serviço).
Vejamos. No corpo dos textos as nuvens de letras e palavras coexistem com uma vegetação de pequenos sinais que as entretecem e lhes infundem espírito.
Escrever é pontuar e pontuar é estabelecer relações entre as palavras. A capacidade de deduzir emoções e sentidos a partir da pontuação foi um avanço fundamental da escrita.
Quem leu os manuscritos de Cervantes (nanja eu!) que sobreviveram até nós, sabe que o autor do Dom Quixote – como a maioria dos seus contemporâneos – não usava vírgulas, nem pontos e vírgulas, nem dois pontos, tão-pouco dividia os textos em parágrafos. Se hoje o livro contém todos esses sinais, significa que foi editado posteriormente (por filólogos ou outros especialistas) e que alguém lhe colocou vírgulas, pontos e vírgulas, dois pontos, e que o distribuiu por parágrafos.
Fazê-lo implicou um trabalho de interpretação do texto de Cervantes, de modo que quando estamos a ler o Quixote, também estamos a ler a interpretação dos seus editores.
A pontuação regula o nosso pulso cardíaco e a nossa respiração. Modula a leitura e dota-a de ritmo, música e sentido. Tanto assim que há inúmeras frases que admitem leituras diferentes consoante a sua pontuação.
Um exemplo instrutivo é contado no livro Perdón, Imposible, de José Antonio Millán, e envolve Carlos V. Quando lhe pediram que assinasse uma sentença de morte («Perdão impossível, cumprir a condenação”), o imperador teve um súbito acesso de magnanimidade, que consistiu, apenas, alterar a pontuação da frase: “Perdão, impossível cumprir a condenação» (graças à mudança da vírgula, salvou-se a vida de um homem e Carlos V emergiu como um imperador um pouco mais decente).
Outro exemplo: em 1984, o jornalista Néstor Luján escreveu um artigo para La Vanguardia sobre as devastações da Revolução Francesa (mantenho a versão em espanhol, pois em português perdia-se o efeito) que incluía esta frase: «En una zona de la Vendée tan sólo, el 40% de la población fue asesinada y el 52% de la riqueza se destruyó.» Inadvertidamente, o impressor do jornal publicou-a da seguinte maneira: «En una zona de la Vendée, tan sólo el 40% de la población fue asasinada y el 52% de la riqueza se destruyó».
Bastou a mudança acidental da vírgula para transformar o autor do artigo num sádico. Em vez de lamentar, compassivamente, a destruição ocasionada pela violência revolucionária, Nestor Luján parecia desejar que a violência tivesse sido ainda maior. (continua).
Artigo transcrito da revista Sábado de 1 de agosto de 2021, escrito segundo a norma ortográfica de 1945.