«(..) Aqui, o que queremos é que uma coisa fique clara: que não estamos fazendo uma caça às bruxas contra o que!»
Certamente você já ouviu uma frase desse tipo dita em alguma situação – ou, possivelmente, você mesmo falou algo assim em algum momento. Na oralidade, construções desse tipo são muito comuns e, por causa disso, a escrita tem “acompanhado a onda” e também nela encontramos esse tipo de construção. Bem, mas, afinal, fica a pergunta: quê que é que está acontecendo aqui?
Podemos dizer que existem pelo menos duas explicações para esse fenômeno: de um lado, há um uso de realce do “que”, numa atitude de dar ênfase ao que se diz; do outro – e também motivado pelo primeiro –, há um uso excessivo do (mesmo?) “que”. Vejamos.
Para a primeira explicação, basta lembrarmos que, na língua portuguesa, há muitas palavras, expressões e partículas que servem apenas para dar maior força argumentativa ao que se quer dizer. Na escola, aprendíamos que essas palavras eram chamadas de expletivas que, segundo o dicionário Priberam, podem ser definidas da seguinte forma: «Palavra ou expressão redundante ou desnecessária, mas que dá ênfase, força, graça, etc.». É o caso de «só« em frases do tipo «olhem só o que vou fazer«, ocasião em que o «só» não exerce nenhuma função particular a não ser a de enfatizar o contexto. Perceba que no exemplo o «só» tem sentido diferente de um caso como «ele ficou só com os familiares», em que o «só» tem o significado de «sozinho». No primeiro caso, o uso foi para dar destaque à frase; no segundo, a palavra realmente fazia parte do enunciado e trazia um sentido maior do que apenas o de destaque.
É o que acontece, também, com a construção «é que», que assume função meramente enfática não raramente quando é usada. Perceba que entre as frases «O quê que é que você está dizendo?» e «O quê que você está dizendo?» não há nenhuma diferença sintático-semântica que não seja o grau de ênfase que se dá em cada uma das frases – ou seja, a diferença passa a ser pragmática, relacionada ao contexto de uso e dependente das escolhas comunicativas do autor no momento de fala.
Vamos seguir agora a explicação retirando o «é que» de nosso exemplo e ficando com a forma «O quê que você está dizendo?». Caso retiremos o segundo «que» da frase, ela continuaria a expressar a mesmíssima coisa de antes (com menor ênfase, naturalmente): «O que você está dizendo?». A retirada do «que» deixa ainda mais claro o quanto ele só estava ali para enfatizar a frase e dar-lhe destaque. Um destaque que é estilisticamente contestável, que possivelmente empobrecerá o texto, mas que continua a ser, a despeito disso, um destaque.
E sobre a segunda explicação, a de que usamos «que» demais quando falamos e escrevemos. Sobre isso, há até um nome para o fenômeno (que não deixa de ser um vício de linguagem): queísmo. Esse fenômeno acontece quando, em um texto, usamos de maneira exagerada «que» em situações em que ou ele não era necessário (e serve para dar ênfase) ou em que ele poderia ser facilmente substituído por outras construções. É o caso de exemplos como «Devolvi o material que me emprestaram que peguei na semana passada e que servirá para eu fazer as provas que estão chegando». Há tantos “que” que o trecho soa confuso, cíclico e repetitivo.
Mas é claro que, sem dúvidas, as escolhas poderiam ser outras. Imaginemos o caso das orações substantivas a partir de um exemplo como «O problema é que ele é chato». Tradicionalmente, aprendemos que a conjunção integrante «que» integra as duas orações do período composto em apenas uma, sendo fundamental nesse tipo de período. Bem, mas a frase poderia perfeitamente ser «O problema é ele ser chato”, usando a opção pela forma reduzida da oração e eliminando a necessidade do “que». Ou seja, não haveria obrigação de usar a forma desenvolvida se, por exemplo, já houvesse muitos «que» no mesmo trecho e fosse preciso eliminar alguns para manter a fluidez do texto.
Fato semelhante acontece com as orações adjetivas, em que facilmente podemos abrir mão do «que» e ter construções semanticamente equivalentes: de «Pedro não viu o livro que recebeu ontem», podemos ir a «Pedro não viu o livro recebido ontem». Como pode ser visto, opções há aos montes: basta conhecê-las e saber empregá-las.
Apontamento da linguista brasileiro Jefferson Evaristo, transcrito, com a devida vénia, do mural Língua e Tradição, no Facebook, com a data de 29 de março de 2024.