O discurso do secretário-geral das Nações Unidas António Guterres, no Conselho de Segurança (ONU), a 24/10/2023, propiciou forte plémica em torno do cuidado com a semântica e a importância que esta área da linguística pode ter na mediação de situações delicadas e que requerem sensibilidade na forma como se utilizam as palavras.
Já na Grécia Antiga, muitos filósofos e políticos se preocupavam com a utilização e adequação ao discurso dos vocábulos certos. Aristóteles, por exemplo, no seu texto Retórica, defende que a comunicação tem uma função primordial na linguagem. Para ele, a linguagem relaciona-se com o uso da palavra, portanto, a preocupação com a palavra e a sua função comunicativa são de grande importância «na arte de bem falar».
Preocupar-se com o uso acertado das palavras é também ter cuidado com o sentido que veiculam, uma vez que este constitui uma parte importante de qualquer ato comunicativo. Em linguística, o ramo responsável pelo estudo do significado é a semântica e, como se tem afirmado desde a polémica intervenção de António Guterres nos espaços de comentário e opinião, esta área da gramática tem uma enorme relevância em momentos-chave da política e da diplomacia. Segundo Ana Cristina Macário Lopes e Graça Rio-Torto, na obra Semântica, «a significação é o ponto de partida e o ponto de chegada de toda a atividade linguística» (pág. 13), o que demonstra o papel nuclear da semântica não só na comunicação, mas também na gramática das línguas. Com efeito, para além de envolver o conhecimento intuitivo do significado das palavras, a semântica também estuda as regras que presidem à construção de frases e dos mecanismos que garantem a sequencialização de discursos e textos. Por outras palavras, a semântica ocupa-se da descrição do significado das palavras, das frases e do texto, o que está relacionado com o facto de qualquer ser humano, enquanto falante de uma língua natural, é capaz de atribuir propriedades semânticas a expressões e intuir relações de sentido entre diferentes palavras.
Neste âmbito, quando António Guterres afirmou que «é importante reconhecer que os ataques do Hamas não aconteceram num vácuo», através de uma frase de polaridade negativa que integra a palavra vácuo, deu azo a uma série de interpretações indesejáveis. Vácuo, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, é uma palavra sobretudo usada na área da física e significa «espaço onde não existe matéria alguma», tendo como sinónimo a palavra vazio. Se «algo não acontece no vácuo/no vazio» se pode entender pela afirmação «algo acontece onde há matéria (para acontecer)», então, as declarações de Guterres tornam-se especialmente melindrosas, porque acabam por afirmar a existência de um contexto que permite compreender o ataque do Hamas. Compreender não é o mesmo que aceitar, mas, quando Guterres recordou a opressão que as autoridades israelitas exercem sobre os palestinianos em Gaza, o lado israelita detetou uma justificação para os ataques sofridos por Israel, dos quais resultaram vários mortos e um número elevado de reféns. Na tentativa de alertar para a catástrofe humanitária na faixa de Gaza, Guterres acabou por criar um impasse diplomático entre a ONU e as autoridades israelitas, que consideram que o secretário-geral da Nações Unidades escolheu, através das suas palavras, um dos lados do conflito e, por isso, perdeu a legitimidade para o mediar.
Em circunstâncias relativas às relações de diferentes Estados que muitas vezes estão em conflito, defende-se um cuidado nas palavras usadas, uma vez que a interpretação errada de um termo é o suficiente para agravar a situação. Todavia, uma palavra não é um pacote rígido de informação e pode muitas vezes ter incidências variáveis, diversificando a proeminência informativa, cognitiva ou ilocutória. Uma palavra, ou uma expressão, pode ter uma multiplicidade de leituras e de interpretações, ou porque é polissignificativa, ou porque tem uma capacidade de denotação mais ou menos alargada, ou ainda porque caracteriza classes ou quantidades de valor aproximado.
Esta não é a primeira vez que o sentido das palavras é tema de debate no espaço político. Em abril deste ano, em Portugal, aquando da polémica em torno do despedimento da antiga presidente executiva da TAP, Christine Ourmières-Widener, a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, afirmou que a controvérsia sobre o parecer jurídico foi «uma questão puramente semântica», trazendo, uma vez mais, para os holofotes mediáticos esta área da linguística.
Estes casos mostram que a disputa discursiva no espaço político não é apenas uma estratégia relacionada com a palavra, mas também o é com o seu sentido. No fundo, a semântica pode ser uma arma importante na batalha da argumentação política e diplomática.