«(...) [A]companho (de mais longe do que desejaria) todo o extraordinário trabalho de descrição, reconhecimento, ensino e difusão da LGP levado a cabo em Portugal nas últimas três décadas (...).»
Conheci pessoas surdas ainda na infância, dois primos direitos da minha mãe, os "mudos". Percebi mais tarde que não eram mudos nem surdos-mudos, mas sim surdos, e que não falavam como as pessoas "normais" porque a surdez os impedia de adquirir a língua oral. Tiveram estes "mudos" a sorte de ser gémeos e assim criarem uma forma de comunicação própria. Não tiveram, porém, a possibilidade de adquirir uma língua, visto que, embora a capacidade da linguagem seja inata, a aquisição de uma língua pressupõe integração em uma comunidade que a fale. Ambos moraram sempre juntos, casaram-se, constituíram famílias e fizeram as suas vidas como puderam, relativamente isolados do resto do mundo. Lembro-me de os ver ocasionalmente, "na loja", a confraternizar com os homens da aldeia usando gestos e sons que impressionavam a criança que eu era.
Pelos anos 1980, vi o filme Filhos de Um Deus Menor (Children of a Lesser God), protagonizado por Marlee Matlin, que aborda, entre outros assuntos, a relação entre falantes de língua oral e de língua gestual. Terá sido a primeira vez que percebi que, pelo menos nos Estados Unidos da América, os surdos têm uma língua própria, a American sign language, visual, silenciosa, que em vez das palavras usa gestos. No início dos anos 1990, chegou a vez de descobrir a língua gestual portuguesa (LGP), pela linguística (que comecei a ensinar na altura) e pela observação de grupos de jovens surdos, frequentadores da Biblioteca Nacional, que gestuavam animadamente pelo Campo Grande. Tive a felicidade de conhecer alguns falantes e estudiosos de LGP e desde então acompanho (de mais longe do que desejaria) todo o extraordinário trabalho de descrição, reconhecimento, ensino e difusão da LGP levado a cabo em Portugal nas últimas três décadas. Hoje todos contactamos diariamente com a LGP graças aos intérpretes, na televisão.
O processo de reconhecimento das línguas gestuais como línguas naturais de comunidades surdas (e não como sistemas de comunicação paliativos, construídos para a "recuperação" de "deficientes auditivos") teve início recente. Nas sociedades ocidentais, estabelece-se a obra de William Stokoe, Sign Language Structure, publicada em 1960 nos EUA, como o início desse processo. Existe, no entanto, ainda um longo caminho a percorrer para o reconhecimento e a difusão das línguas gestuais, garantia maior do respeito pelos direitos dos cidadãos surdos; em alguns casos, faltam inclusivamente condições para que estas línguas possam emergir espontaneamente e desenvolver-se, i.e. falta a possibilidade de agregação de surdos em comunidades.
As línguas gestuais são um objeto de estudo extraordinário para os linguistas: além de constituírem línguas com gramáticas e léxicos específicos, mas sem sons, o seu surgimento propicia a oportunidade de assistir ao nascimento e primeiras fases de desenvolvimento de línguas naturais, levando a (re)pensar e a (re)discutir princípios básicos da ciência linguística. Precisamos, contudo, de não esquecer que, mais do que objetos de investigação, as línguas gestuais pertencem primeiramente e são essenciais às comunidades que as criaram e usam. Cuidemos, pois, de aprender a ouvir e a respeitar o que os seus gestuantes têm a dizer.
Artigo de opinião da linguista Margarita Correia publicado no Diário de Notícias em 12 de dezembro de 2020.