Uma televisão pública transmite, como é óbvio, os seus conteúdos verbais na norma-padrão da língua do país onde presta esse serviço. Torna-se, porém, inevitável que programas de heterogénea índole, noticiosos ou não, revelem uma enorme diversidade de formas à margem do modelo de correção linguística ou que evoquem imediatamente aspetos culturais geograficamente circunscritos. A diversidade linguística e cultural de Portugal ficou, por exemplo, patente no concurso Joker, um programa da RTP , ao incluir por duas vezes formas linguísticas relacionadas com os aspetos mais tradicionais da cultura rural.
O primeiro caso (programa de 9/10/2019) diz respeito a uma pergunta que põe à prova a competência linguística do concorrente. Tratava-se de identificar a forma correta da 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo do verbo “moer”; e o concorrente acertou ao dizer “moo”, o que é sempre bom sinal. Mas outro sinal, discreto, era o constituído pelas opções erradas, que não eram pura invenção, muito pelo contrário. Uma delas, “moio”, merece uma breve explicação sobre um traço que era frequente nos dialetos portugueses: a inserção de um “i” em situações de hiato, isto, no encontro de vogais que pertencem a sílabas diferentes. Este “i” ainda aparece num hábito muito vivo entre falantes do norte de Portugal, em sequências como «a-i-água», em lugar de «a água». Mas este “i” algo intrusivo também pode (ou podia) sugerir na flexão verbal: “vaia”, em vez de vá e pressupondo uma forma mais antiga, “vaa”; o mesmo acontece com dois “oo” seguidos, que é o que ocorre com “moio”; e talvez também com “doia”, em lugar de doa. Historicamente, este “i”, que a norma-padrão rejeitou em muitos casos, figura, no entanto, em formas totalmente legítimas, sendo muito frequente, a ligar o e a o ou a, em feio (de feo) ou em ceia (de cea).
Com o verbo moer, evocando o milho moído em casa, se relaciona referencialmente o nome xerém, que apareceu na emissão de 11/10/2019 do programa em apreço. Ocorrendo sob a forma variante xarém, o termo xerém emprega-se em regiões do Algarve para designar as papas de milho (há também notícia de se atestar em pontos do Alentejo mais meridional). Feito de diferentes formas, com diferentes receitas, o xarém era e é servido com carne, peixe ou marisco.
Poderia pensar-se que a sonoridade algo exótica da palavra é indicativa de uma herança árabe. A verdade é que xerém se deverá antes aos contactos ultramarinos mais tardios, que não são de admirar numa região que serviu de autêntico trampolim para a expansão de Portugal em África, na Ásia e na América. Há, portanto, quem defenda – é o caso do estudioso brasileiro Nei Lopes – que este nome poderá, pois, ter origem muito mais a sul, no quicongo1 nsele «mandioca que se faz cozinhar e macerar durante três dias». É curioso que o Dicionário Houaiss ignore o emprego da palavra em Portugal e a atribue exclusivamente ao Brasil e a Cabo Verde. Em relação a este último país, a mesma fonte regista xerém usado na aceção de «papa de milho acrescida de carne e molho», além de ter entrada para a variante xarém, dada como característica das ilhas de Barlavento, onde denotará o «milho pilado ou triturado em moinho de pedra».
Em matéria de etimologia, não se espere que os enunciados produzidos a respeito de cada palavra tenham grande força assertiva. As linhas aqui lidas também não podem garantir que o xerém/xarém do Algarve seja efetivamente uma palavra de origem banta. Mas dá que pensar que o xerém cabo-verdiano denomine um prato em que igualmente entra milho. Reconhecendo que para Portugal, sobretudo a sul, foram trazidos numerosos escravos provenientes da África a sul do Sara, é difícil resistir à possibilidade de confirmação da tese de Nei Lopes. E se as papas de milho e o seu nome mais “exótico” se popularizaram por causa dos hábitos alimentares de africanos escravizados em terras algarvias? Fica a pergunta como mera sugestão, com certeza um tanto apressada, que nem tempo conseguiu para chegar à origem desse tão sonoro vocábulo cabo-verdiano cachupa (mas já abordado aqui).
Uma última observação: o programa de 11/10/2019 só errou efetivamente ao escrever “feijão frade”. A forma correta é feijão-frade, com hífen, conforme é devido na escrita de todos os compostos que denotam espécies botânicas ou zoológicas2.
1 Pertencente ao sub-ramo banto da família linguística Níger-Congo, o quicongo (cf. Ethnologue) é falado no norte de Angola e na República Democrática do Congo. Também de acordo Nei Lopes, ainda citado em anota etimológica do Dicionário Houaiss, o uso de xerém com o significado de «dança nordestina de roda» relacionar-se-á com a letra de uma canção do músico pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989): «Oi, pisa angu/ penera o xerém/ Eu não vou criar galinha/ pra dar pinto pra ninguém».
2 Agradeço ao consultor Luciano Eduardo de Oliveira a seleção das imagens aqui apresentadas, que motivaram estas considerações.