Começo este ensaio com os dizeres da poeta chilena Gabriela Mistral em sua conferência sobre O Menino Poeta, de Henriqueta Lisboa, em Belo Horizonte, em 1942. Segundo ela, a Língua Portuguesa é mais propensa à poesia do que a Língua Espanhola – esta seria própria para a prosa.
Na opinião da própria Gabriela, o português seria uma lírica fina, mais grata e mais terna aos ouvidos, o que facilitaria a vida da Henriqueta, porque aqui se fala «menininho», «chuva», «passarinho», «paina», «pena», «saudade», «coração», «noite», «ombro», «choro», «canção», «cachoeira», «riacho», «lírica». E, no Brasil, essa língua de lírica fina ganha «Amanda», «amora», «jatobá», «jaguatirica», «capivara», «caju», «ibirá», «tatu», «beiju», «ira» e «ita», como também «cafuné», «moleque», «samba» e «berimbau».
A Língua Portuguesa, «última flor de Lácio», a que nasceu «inculta e bela», é a língua da poesia. Última a se desgarrar da saia da mãe Latim, era considerada, em seus primórdios, uma língua inferior, popularesca, rústica e menor que sua irmã espanhola. Talvez porque sua origem remonte à Galiza, noroeste da Espanha, lugar de gentis pastores de ovelha e camponeses. Mal sabia o mundo que as pessoas nascidas naquela região cantavam em vez de falar ou contar.
Tudo era canto: os montes, os pastos, as pedras e as árvores em comunhão com as pessoas. «Airinhos / Aires de minha terra», cantou Rosália de Castro, poeta galega do século 19. Se uma parte da língua quis permanecer em casa, a outra desceu o Tejo e quis ser Império. A Língua Portuguesa abandonou sua parte galega, os pinheiros e os moinhos do norte, para ser dona do além-mar – mas ela nunca abandonou as raízes do canto e do poema. O que ela quis foi conquistar. E a melodia é seu manto.
É por essa razão que a língua de Camões e de Pessoa tem o registro do seu nascimento em um poema, uma canção de amor: a Cantiga de Ribeirinha, de Paio Soares de Taveirós. As palavras já nasciam impregnadas de dor e de melancolia, da insatisfação do amor não consumado e da nostalgia plena que aqueles montes, moinhos, pinheiros, caminhos, ramos e pássaros lhe davam; na voz das mulheres que não falavam, mas cantavam o canto doce da solidão.
Porém, essa língua queria o mar como se buscasse a face do amado que partiu. Foi se tornar rainha e criou um dos cancioneiros mais lindos que mundo já viu, misturando a força melódica de suas palavras com o canto desesperado e matemático dos árabes para ser pura consternação.
"Ai flores, ai flores do verde pino
Se sabedes novas do meu amigo?
Vós preguntardes pelo vosso amigo?
Ai, Deus e u é?”
diz Don Dinis, grande trovador das trovas e da dor. Não me surpreende se ele tivesse roubado esses versos de alguma dona chorosa pela separação inesperada de seu amado.
E não é que essa língua ganhou o mar? E, com ele, uma epopeia grandiosa de estilo greco-romano para coroar sua força e sua presença no Planeta: «As armas e os barões assinalados». Contudo, Camões não deixou de ser poeta e fez de Lusíadas uma obra rara, plena e soberana, como foram os portugueses naquele tempo pelos mares e pelas terras que encontravam. E só em português esse poeta poderia dizer:
“Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É a dor que desatina sem doer”.
Qual a outra língua que consegue falar de amor de maneira tão abrupta, tão dolorida e ao mesmo tempo tão impactante, usando imagens paradoxais e com a força melódica de palavras que rasgam o coração?
Os portugueses calharam de calhar na Ilha de Vera Cruz os seus barcos e a sua língua desejosa de novos ares. Aqui encontrou as árvores pujantes, densas, maiores, enormes e gigantes, pássaros coloridos, um verde brilhante das folhas, um sol estarrecido, demasiado presente que se vigora nas faces.
Tantas cores, tantos animais, tanta terra, tantas águas e pedras que o português parecia um pescador solitário, cantando um monólogo moído fadado aos fados e ao som de uma cítara oca de tanta pena:
“Pus-me a cantar minha pena
com uma palavra tão doce
de maneira tão serena,
que até Deus pensou que fosse
felicidade – e não pena”
diria, séculos mais tarde, Cecília Meireles, a poeta brasileira que mais carregou em sua obra esse sentimento original da nossa língua.
Somente outro povo, mais espiritual e mais pleno, mitológico, poderia dizer e nomear tanta verdura e tanta coisa que se viu ao desembocar nessas praias. Foi por isso que o português no recente Brasil se calou, aprendeu primeiro a língua daqueles povos tão fortes e guerreiros que mais pareciam sair de alguma lancinante narrativa medieval.
A verdade é que nossa Língua Portuguesa descobriu com as línguas indígenas outra forma de fazer poesia – uma forma mitológica e ritualística. Dessa maneira, os portugueses e seus filhos mantiveram os nomes das coisas, dos pássaros, dos animais, dos rios e de todos os caminhos que os índios já tinham nomeados, embora os manchassem com o sangue indígena. Aprendeu a Língua Portuguesa aqui a se guardar em meio às matas e às estradas, aprendeu a ser mais pausada e silabada, aprendeu a fixar o sujeito-verbo-objeto de maneira que ganhasse uma essência mágica e curativa como eram os cantos do Pajé.
Diz a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen sobre o português do Brasil:
Gosto de ouvir o português do Brasil
Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como fruto nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal
Quando Helena Lanari dizia o «coqueiro»
O coqueiro ficava muito mais vegetal.
As línguas dos africanos que por aqui vieram como escravos eram puras vibrações sonoras, batuques, baladauês, cafunés. Com afeto e pés de moleque, a Língua Portuguesa aprendeu que, em meio à dor, também se pode cantar a alegria, dançar, fazer do corpo também seu ritmo, sua entonação, suas pausas e sua expressão. O português no Brasil se tornou o arroz com feijão, o cardápio completo entre a nostalgia original de suas palavras e as vibrações, o rito, o desejo, a magia das línguas africanas e indígenas que ela absorvia com o desespero de ser, mais uma vez, poesia e canto simplesmente – e, aqui, ser também dança.