Já foi [em Portugal] Dia da Raça. Agora, felizmente, é Dia de Camões e das Comunidades Portuguesas. Acho, porém, que o 10 de Junho deveria ser o Dia da Língua Portuguesa. Seria a evolução natural desta data que foi sendo celebrada de formas diferentes ao longo da História, mas que tem agora uma missão histórica a cumprir: reorganizar o espaço da língua portuguesa na hora da globalização.
Precisamos de uma data que sirva de pretexto para a operação de luta pela nossa língua e nada melhor que o dia da morte de Camões para fazer renascer o espírito dessa fala que fez a unidade nacional no Brasil e desempenha ainda idêntica função nos países africanos desenhados pelas fronteiras coloniais. A Língua Portuguesa precisa de uma festa que junte os seus milhões de falantes em torno de um dos mais belos poemas que alguma vez se escreveu para contar o Renascimento, «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades».
Quando alguém quiser explicar a Renascença como fim da Idade Média, basta-lhe recitar este soneto de Luís Vaz de Camões. São versos de luminosa contemporaneidade. Não há melhor poema para explicar as mudanças no mundo actual do que estes dinâmicos versos que todos os jornalistas deviam ler antes de escrever qualquer notícia:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Muda-se o ser, muda-se a confiança.
Todo o mundo é composto de mudança
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E, em mim, converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
Desculpem transcrever na íntegra este soneto que todos devíamos saber de cor, mas Camões não pode ser só um poeta zarolho que se estuda vagamente nas escolas. É preciso lembrar que os versos dele estão para a actualidade como a história está para o futuro. Ler hoje estes versos em todos os países onde se fala português seria um excelente pretexto para percebermos que todos temos que ser motores de mudança.
Mudar é a mensagem. Enquanto é tempo. Porque não basta repetir lugares-comuns na liturgia das nações. É preciso recuperar versos perdidos como as célebres trovas d´«Aquela cativa que me tem cativa». Por exemplo.
Dizia Camões, referindo-se a essa mulher de «Rosto singular,/ Olhos sossegados, /Pretos e cansados, /Mas não de matar» que «Bem parece estranha / mas bárbara não.» É um poema de amor a uma mulher negra que termina talvez com a melhor mensagem que hoje mesmo se pode mandar para África:«Presença serena/ Que a tormenta amansa;/ Nela enfim descansa/ Toda a minha pena./ Esta é a cativa/ que me tem cativo,/ E, pois nela vivo,/ É força que viva.»
Texto publicado no semanário português "África", de 07-06-2004