Ah, a minha língua, aquela de que hoje é o dia! Deve acontecer a muitos, não necessariamente a todos, gostar da sua língua. A alguns até acontece gostar por razões que não posso nem imaginar: em Taiwan, existe uma língua, o kavalan, que tem apenas 24 falantes. Ou tinha, porque li isso no ano passado e os falantes do kavalan são velhos. Que posso saber eu dessa condição? Mas posso saber o que é ter uma língua que encontro em tantos lugares e entre tanta gente. É tão bom. É desse português que quero hoje lembrar.
Um dia, num livrinho estreito, li uma mulher a falar curtamente sobre o poder e a cupidez: que as fortalezas caíram por serem fortes, que as cidades de portos foram invadidas por corsários... Depois, Sophia [de Mello Breyner Andresen] foi ainda mais breve: «Porém Cacela/ foi desejada só pela beleza.»
Um dia, escrevia eu sobre metecos. Vocês sabem, os estrangeiros que tinham permissão de viver na antiga Atenas. Ia por aí fora quando me telefonaram: «Morreu o Joaquim.» Morrera Joaquim Pinto de Andrade [1926-2008] no meio da minha crónica. Da sua crónica, ele que era cidadão do mundo. Mas o Joaquim não era angolano? Era, como ninguém mais do que ele. Ninguém conheci, dos pais da nacionalidade angolana, que mais pudesse dizer: não feri o meu país. Ele foi a coragem serena que lhe valeu prisões durante a Angola colonial, ele foi a fraternidade angolana quando o país se dilacerou em guerras civis, ele foi a honestidade quando Angola se ofuscou de falsa riqueza. E, na sua morte, lembrei-me de como ele me contou a infância no mato, em terras de Ambaca, a ler Camilo e Ramalho. Desse português, ele disse-me ser «de língua tersa». Pura, límpida, tersa.
Um dia, eu almoçava numa taberna, em João Pessoa. De João Pessoa, capital da Paraíba, eu sabia menos do que do homenageado que deu o nome à cidade. João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque [1978-1930] candidatara-se a vice-presidente, junto a Getúlio Vargas [1992-1954], em 1930, quando foi assassinado na confeitaria Glória, no Recife, o que deu uma revolução. Mas a empregada de mesa botou conversa sobre outros heróis: Maria Bonita [1911-1938], brava (ela disse braba) mulher do cangaceiro Lampião, de nome Virgulino Ferreira da Silva [1898-1938], como sabem. Quem rematou a conversa foi a empregada, voltando a Maria Bonita: «Ela era um estropício.» A última pessoa de quem ouvira dizer a palavra foi a minha avó.
Um dia, em Quelimane, cercada pela guerrilha, um moçambicano descreveu-me o cenário de um filme do faroeste – era uma autobiografia e ele não era um cowboy. Era mecânico e trabalhava numa fazenda de cana-de-açúcar na Zambézia. A fazenda tinha equipa de futebol e esta fora a Quelimane para um amistoso. O mecânico, defesa esquerdo, já achara estranho o nervosismo do treinador ao intervalo. No fim do jogo, soube que a fazenda tinha sido ocupada pelos guerrilheiros da Renamo. O defesa esquerdo voltou a pé para a fazenda, rendeu-se ao sentinela que guardava a picada à entrada da aldeia – encostados ao imbondeiro, o sentinela e a Kalashnikov. O homem reencontrou a mulher e os dois filhos mas o mais novo morreu de paludismo. O trabalhador continuou a fazer de mecânico, o médio esquerdo deixou de jogar futebol e o pai escondeu uma piroga. Um dia, ele e o que restava da família fugiram numa piroga pelos meandros de um afluente do Zambeze. Do guião do filme, lembro-me de o homem que fugiu para dentro ter-me feito este resumo: «Porque sim.» Assim, esses dois sons.
Um dia, há pouco, ao ler uma notícia de prédio alto e pobre ter ruído em São Paulo, lembrei-me de Elis Regina a cantar [Nossa Maloca]: «Se o senhor não tá lembrado/ Dá licença de contá/ Que acá onde agora está/ Esse adifício arto/ Era uma casa véia/ Um palacete assobradado.» Ao lado dela estava o autor da letra, Adoniran Barbosa, filho de imigrantes italianos analfabetos e pai de uma língua tersa.
Um dia, porque eu não tinha dinheiro para pagar um carro só para mim, de Singapura para Malaca, meti-me numa carrinha com turistas alemães. Em Malaca pedi para passar por um pequeno porto, os outros torceram o nariz e só aceitaram porque prometi ser breve. Havia pescadores num molhe, dois reconheceram-me, entreguei-lhes a garrafa de porto que tinha prometido em visita anterior e lancei-lhes alto uma expressão: «Barku ki boa.» Eles olharam para o céu, como quem procura um avião. Entrei na carrinha e os alemães perguntaram-me: «Fala malaio?» Abanei a cabeça, e mais não disse. Não lhes ia ensinar segredos seculares.
Um dia, ouvi uma mulata a fugir da guerra, num aeroporto incendiado, numa ladainha para os filhos agarrados às saias: «Atirei o pau ao gato/ Mas o gato...»
Um dia, umas senhoras aperaltaram-se com vestidos estampados de hibiscos e convidaram-me para jantar, na ilha de Maui, Havai. Cantaram-me modinhas açorianas e diziam as palavras com a mais cerrada das pronúncias de São Miguel. Mesmo aquelas que só tinham antepassados da cabo-verdiana ilha Brava e da Madeira.
Um dia, eu comentava na RTP Internacional a primeira conferência de imprensa de um presidente angolano e uma colega perguntou-me o que eu achara mais importante. Respondi: «João Lourenço ter dito: como sói dizer-se.»
Artigo publicado no Diário de Notícias, no dia 5 de maio de 2019.