A ideologia das raízes - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A ideologia das raízes
A ideologia das raízes
O perfil das línguas românicas e germânicas

 «[As] escolhas que as línguas fizeram e fazem [...] determinam uma espécie de “perfil ideológico” do léxico de cada uma: línguas mais “classicizantes” ou “vulgarizantes”, mais xenófilas ou xenófobas, mais nacionalistas ou cosmopolitas, e assim por diante

 

1559551737265_A_carta_das_l_nguas_minorit_rias_e_suas_vulnerabilidades_na_Europa.pngA Europa ocidental engloba duas famílias linguísticas principais: a românica, ou neolatina, cujas línguas provêm do latim vulgar, e a germânica, ou teutônica, descendente do germânico comum. Tanto o latim quanto o germânico derivam do indo-europeu, língua que teria dado origem tanto a línguas do Oriente Médio (Índia, Paquistão, Irã e Afeganistão, principalmente) quanto à maioria das línguas europeias. O indo-europeu nunca foi documentado por ter sido falado na Pré-História, portanto antes da invenção da escrita. No entanto, tem-se uma ideia razoável das características dessa língua graças ao método histórico-comparativo, que procedeu à sua reconstrução por meio da comparação entre as línguas documentadas que dela descendem, inclusive o português. Foi pelo reconhecimento de padrões sistemáticos de semelhança e diferença entre as características fonéticas, léxicas e gramaticais dessas línguas que se chegou a uma hipótese consistente sobre a configuração geral do indo-europeu. Entretanto, é preciso dizer que os constantes avanços nas pesquisas têm levado a periódicas revisões nessa configuração.

Mas as línguas românicas e germânicas têm mais em comum do que só a ascendência indo-europeia. Os países que as falam constituem a Civilização Ocidental, a mais influente já surgida no planeta, fruto do legado cultural greco-romano e dos valores judaico-cristãos. Essa dupla herança — cultura clássica e cristianismo — condicionou a história, os costumes, a maneira de pensar e a língua desses povos, principalmente no léxico, que sempre foi fortemente influenciado pelo latim literário (e, em menor escala, pelo grego, através do latim). Afinal, até aproximadamente o século XI, o latim era o único idioma de cultura do Ocidente, e nele eram escritos todos os documentos literários, religiosos, filosóficos, jurídicos e burocráticos, bem como proferidos todos os discursos formais (missas, sentenças judiciais, aulas universitárias). Os dialetos vulgares (falares que não o latim) eram usados em situações corriqueiras.

Ao fim da Idade Média, alguns dialetos começam a produzir documentos escritos, tornando-se pouco a pouco os idiomas de cultura que hoje conhecemos (francês, italiano, espanhol, inglês, alemão e, claro, o português). Nesse momento, seu vocabulário, até então restrito ao universo da casa, do comércio e da agricultura, passa a importar palavras do latim e do grego para dar conta de vivências que até então só tinham expressão nas línguas clássicas.

É então que tais línguas se veem confrontadas com escolhas a ser feitas: importar o vocábulo grego ou latino no original ou adaptar sua fonética e morfologia à língua de destino? Usar a palavra latina ou substituí-la por um equivalente vulgar? Importar do latim ou de outra língua vulgar que já tenha literatura de prestígio? Tomar emprestado ou criar uma nova palavra usando só material vernáculo? São essas escolhas que as línguas fizeram e fazem que determinam uma espécie de “perfil ideológico” do léxico de cada uma: línguas mais “classicizantes” ou “vulgarizantes”, mais xenófilas ou xenófobas, mais nacionalistas ou cosmopolitas, e assim por diante. Evidentemente, o português também faz essas escolhas.

Latim2.jpgQuando pegamos um manual de instruções redigido em várias línguas, notamos que, onde o francês e o inglês empregam a palavra latina instruction (do latim instructionem), em que só a desinência foi adaptada, o português substitui o sufixo tionem pelo vernáculo ção (instrução) e suprime o c do radical, enquanto o italiano elimina o n e o c e adapta a ortografia (istruzione), e o alemão cria um decalque a partir do latim (Anweisung). (Decalque é o processo em que alguns ou todos os morfemas de uma palavra são substituídos por equivalentes em outra língua, como no caso do inglês hot dog, que se transformou em cachorro-quente em português.) Ou seja, diante da necessidade de importar uma palavra latina, cada língua a incorpora segundo um processo diferente.
Parte do léxico dos idiomas românicos e germânicos foi herdada das respectivas línguas-mães (latim vulgar e germânico comum), parte foi importada de outras línguas (clássicas ou vulgares) e parte foi criada internamente, por composição ou derivação a partir de palavras já existentes. O empréstimo pode ser direto (a partir da própria língua criadora da palavra) ou indireto (quando a palavra provém de uma língua em que ela já era empréstimo). Além disso, tanto os empréstimos quanto as criações internas sofrem a evolução histórica.

A influência das línguas clássicas sobre as vulgares foi tanta que, ainda hoje, termos técnico-científicos e vocábulos de cultura de idiomas europeus são empréstimos do grego ou latim, ou estão formados com elementos morfológicos dessas línguas e segundo seus modelos. Tanto que uma palavra grega ou latina recém-introduzida numa língua europeia não é sentida como estrangeira, mas já entra com todas as adaptações fonológicas, morfológicas e ortográficas que a tornam, desde o início, palavra familiar à língua (teatro, organismo e temperatura jamais foram sentidas como estrangeirismos em português). Já palavras de outras línguas chegam como estrangeirismos (o que é revelado pela grafia, pronúncia e morfologia) e só depois perdem, ou não, o caráter estrangeiro (football aportuguesou-se para futebol; pizza ainda não).

As línguas europeias sofrem influências verticais do grego e do latim e horizontais das demais línguas. Em princípio, tais influências se exercem igualmente em todas as línguas. Mas cada uma cria ou renova seu vocabulário por meios diferentes. Cada língua prefere certos processos, os quais mudam com o tempo, de modo que a feição do léxico num dado momento resulta das tendências até então, que de certa forma determinam também o futuro, já que muitos de seus traços vão repetir-se de modo sistemático. Essa postura “ideológica” fica patente em relação aos empréstimos, pois em face da influência estrangeira, seja ela greco-latina ou vulgar, cada língua delineia suas tendências de formação do vocabulário.

Fonte

Apontamento publicado no mural Língua e Tradição, no Facebook, em 24 de abril de 2022.

Sobre o autor

Linguista brasileiro, é doutor em Linguística pela USP, pós-doutorado pela UERJ, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental e Anatomia da Cultura . Faz ainda parte dos grupos de pesquisa Semiótica, Leitura e Produção de Textos (SELEPROT) e Morfologia Histórica do Português (GMHP), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Também é poeta e tradutor (ver sítio pessoal e blogue associado à revista brasileira Língua Portuguesa).