Sobre a transformação do latim em português - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Sobre a transformação do latim em português

É impossível fixar a data do aparecimento do idioma de que hoje nos servimos e tem sido instrumento de uma brilhante literatura; tão pouco se pode determinar a época precisa em que os sons do latim popular se transformaram nos portugueses que lhes correspondem; essa transformação não surgiu de repente, mas foi-se operando lentamente. Como qualquer ser vivo que, antes de atingir a forma que o distingue dos outros, passa por fases diversas, que lhe vão alterando as feições, as línguas, antes de se fixarem, sofrem sucessivas e constantes modificações. Assim, por exemplo, entre os vocábulos latinos factu- e falce- e os actuais feito e fouce, devem admitir-se os intermédios faito e fauce. Igualmente pessoa, v.g., não de um jacto de persona-; esta palavra, na boca da plebe romana, soava pessona-, daqui, pela ressonância especial comunicada à vogal pela nasal seguinte, passou a pessõa e desta forma à actual, donde três estádios para o mesmo vocábulo, sem que se possa determinar quando um desapareceu para dar lugar ao outro. Mas que a nossa língua já existia no século IX, provam-no os documentos que dessa data afastada nos restam. Escritos embora em latim bárbaro e com muitas fórmulas comuns a outras nações, como não podia deixar de suceder, tratando-se de usos idênticos, aparecem neles já, (além de vocábulos que o notário evidentemente latinizou por forma grosseira, levado pela comparação com outros de terminação idêntica, como ovelia por ovis, sob influência de filha, em latim filia) muitos com feição e cunho verdadeiramente portugueses. Só do século XII em diante é que começam a aparecer documentos escritos por completo ou quase por completo em português, sem que todavia se pusesse totalmente de parte o latim bárbaro, que ainda persistiu por muito tempo. Quase pela mesma época, a poesia, sobretudo, apodera-se da língua falada pelo povo e eleva-se à dignidade de literária. Como já sucedera em Roma com o latim, segundo vimos atrás, o português desde então cinde-se e toma duas feições, que cada vez se vão afastando mais, a popular e a literária ou culta, as quais têm chegado até nós. Fixando-a pela escrita, a literatura veio não só em parte pôr um dique às transformações fonéticas, que necessariamente continuariam a operar-se com a mesma força que antes, mas sobretudo dar-lhe carácter mais alatinado, porquanto, além de proscrever muitos vocábulos de antiga formação popular, que substituiu por outros de formação nova e inteiramente artificial, introduziu também bastantes cultos. Aqui, como lá fora, a leitura dos livros latinos, especialmente os de carácter religioso, nunca cessou; dessa leitura havia de forçosamente ressentir-se a língua literária. Com efeito, precisando de traduzir para vulgar, ou romance, como então se dizia, algumas dessas obras, os respectivos tradutores, ou porque a língua popular lhes não oferecia equivalente ao termo latino, ou por prurido de erudição, trasladavam-no para português, dando-lhe na maioria dos casos feição nacional, mas que em tanto não passava de artificial. E que essas traduções estavam muito em voga na Idade Média, dá-nos disso testemunho el-rei D. Duarte, que no seu Leal Conselheiro chega a formular as regras para bem traduzir. É a estes vocábulos, que o cultivo do latim introduziu na língua quase desde o seu aparecimento, mas principalmente nos séculos XIV e XV, que se dá o nome de cultos. A par destes, outros há cujas modificações foram superiores, mas que, apesar disso, entraram na língua, não pelo ouvido, mas pela leitura e em data mais antiga; são os semicultos. Tantos uns como outros distinguem-se dos que constituem a base da língua – os populares – cuja introdução no léxico coincide com o período da sua formação e que revelam evolução espontânea e gradual, ao contrário dos outros, que apresentam aspecto artificial e portanto forçado. Assim, comparando, por exemplo, as palavras noite, frio, pessoa, pé, etc., com nocturno, frígido, personificar, pedal, etc., reconhecemos logo à primeira vista que foi diferente a maneira do seu tratamento e que na sua evolução seguiram caminho diverso, donde lhes resultou aspecto especial e por vezes tão peculiar, que nem sempre é visível, logo à primeira inspecção, o laço que os prende, como sucede, v.g., a quelha e tanchar, que aparentemente não mostram relação alguma com canal e plantar. Ainda com relação aos vocábulos populares, cumpre observar que não datam todos da mesma época; uns fizeram a sua entrada na língua, quando outros, havia muito, nela tinham assento e morada, pois só assim se explica que sons idênticos fossem tratados diferentemente, como se vê em artelho e artigo, representantes ambos do latim articulus. Vocábulos há, até, que conheceram as três fases: popular, semiculta e culta; outros, apenas as duas primeiras. Deste facto resultou aparecer actualmente na língua o mesmo vocábulo latino sob formas diferentes, dando assim origem aos chamados divergentes ou alótropos. Estão neste caso vezo, viço e vício, relha, regra e régua, além de outros muitos, os quais correspondem a uma única forma latina, que para os citados é vitiu e regula.

Os fenómenos que resumidamente acabamos de mencionar dão à língua duas fases que, embora se não distingam essencialmente uma da outra, apresentam contudo caracteres suficientes para se estabelecer separação entre elas; são: a arcaica, que se estende do século XII aos meados do século XVI; e a moderna, que, principiando então, continua nos nossos dias. Mas, porque a língua, antes de ser fixada pela escrita, já existia, segundo vimos, poderemos admitir outras duas fases anteriores àquelas, a saber: a pré-histórica, que abrange todo o período da formação da língua, no qual esta se nos não revela; e a proto-histórica, que vai desde o século IX até ao XII, espaço de tempo este no qual só a conhecemos pelos escritos em latim bárbaro.

Fonte

Do "Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa", "Fonética-Morfologia", Lisboa, 1919; pág. 13 e ss. in, "Paladinos da Linguagem, vol.III, Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1923.

Sobre o autor

José Joaquim Nunes (Portimão, 1859 – Lisboa, 1932) foi um sacerdote católico e professor universitário que se destacou pelos seus trabalhos de lexicografia dialetal e histórica. Contribuiu para o enquadramento geral na descrição dos fenómenos da fonética histórica da língua portuguesa ao publicar vários trabalhos de lexicografia dialetal e lexicografia histórica e estudos avulsos de etimologia e de onomástica. A sua bibliografia foi, em parte, publicada na Revista Lusitana e no Boletim da Academia das Ciências de Lisboa, mas é autor de diversas monografias, entre as quais: Contos ao Lar (1888) e Compêndio de gramática histórica portuguesa (1919).