O uso da vírgula na situação apresentada é possível.
Diga-se, antes de mais, que muitos usos da vírgula não estão codificados num quadro normativo.
De uma forma geral, usa-se a vírgula para separar sintagmas ou orações coordenadas, exceto as que são introduzidas pela conjunção e:
(1) «O João, a Rita e o Pedro vieram à sessão.»
(2) «Queria que estudassem a matéria, fizessem os exercícios e apontassem as dúvidas.»
Não obstante, usa-se vírgula quando duas orações coordenadas pela conjunção e têm sujeitos diferentes, como em (3), onde se sublinham os sujeitos:
(3) «Entra na cubata à procura da catana e logo aí sua boca apodrece a resmungar contra tudo e todos, que mesmo o soba deixou já de ter alma de soba, o sangue está mole no corpo das pessoas, e as admiráveis mulheres esmorecem sua coragem de continuar o mundo para nada.» (João de Melo, Autópsia de um mar de ruínas. 1992)1
Para além disso, a vírgula pode também ser usada opcionalmente em orações coordenadas por e com o mesmo sujeito2:
(4) «Por fim, desembarcaram Balbino e Juca Tristão, e este, dirigindo-se a um homem cuja presença Alberto não havia fixado, ordenou-lhe […]» (Ferreira de Castro, A Selva. 1967)
(5) «[Ele] Tomou um gole de rhum [sic], e [ele] continuou […]» (Olavo Bilac, Contos para Velhos. 1897)
Esta vírgula é, nestes contextos, um sinal de pontuação que pode ser entendido como opcional e que é usado para efeitos estilísticos associados, por exemplo, à intenção de destacar o último elemento coordenado ou de marcar a independência de cada uma das situações descritas pelas orações coordenadas, entre outros valores. É neste contexto que a vírgula usada no texto de Sophia de Mello Breyner Andresen se poderá interpretar.
Disponha sempre.
1. As frases de autor foram recolhidas no Corpus do Português, de Mark Davies.
2. Esta possibilidade é referida, por exemplo, em Neves, Pontuação em Português. Guerra e Paz, p. 67.